(Excertos de Rachel Gazolla de Andrade, “Platão, o Cosmo, o Homem e a Cidade”)
O Fedro não se distancia do que foi exposto até aqui. A natureza da alma nesse diálogo é estabelecida como divina e humana, e Sócrates propõe a Fedro refletir sobre as afecções e atos (páthê te kai erga) dessas almas de natureza tão diversas (245c) e que, a rigor, são uma mesma ousía mas apresentam-se nessas duas formas (eide). Sua primeira colocação sobre a imortalidade da alma afirma seu movimento próprio, sua condição de princípio do movido, como nas Leis. Com tais características, ela não pode ter sido gerada mas gera, isto é, tem o princípio da geração. Se tudo o que existe na physis tem movimento, e a cessação deste implica na não-existência das coisas físicas, a alma como ousía vivente, princípio do movimento e fundamento da vida, não é física mas funda a física. É esse exatamente o seu lógos e sua ousía, como diz Sócrates:
“..Agora que ficou evidente a imortalidade daquilo que é movido por si mesmo, não teremos escrúpulos em afirmar que é essa a ousía da alma, que sua razão é essa mesma {te kai lógon toúton autón tís légôn ouk aischyneitai)” (245e).
Novamente, a alma é apresentada como o primeiro motor da physis gerativa, e, no mundo dos corpos em que vivemos, parece que o bom entendimento de algo só nos vem, primeiramente, se acompanhado de imagem. Tal limitação Platão aponta-a quando se vê impossibilitado de aprofundar a noção de alma mais do que já vinha tentando. Ele diz:
“…Quanto à sua própria forma (perídé tês idéas autês), eis o que é preciso dizer: caracterizá-la é trabalho de uma exposição inteira e absolutamente divina e muito extensa; mas dar uma imagem (éoikeri) (é) trabalho de uma exposição humana e de menores proporções” (246a).
A imagem a ser dada será, é claro, “sensível”, ou seja, a alma é dita uma força ativa na natureza, que circula pela totalidade do universo revestindo formas somáticas diferentes (246b), quaisquer que sejam elas, movendo e vivificando tudo, e não se confundindo com essas formas viventes. Como fora enunciado, a alma pode ser humana ou divina, e aceitando-se que o Fedro é anterior ao Timeu, naquele Platão anunciará o desenvolvimento de parte deste no que concerne ao estabelecimento de um vivente imortal e divino, isto é, o próprio cosmo com seus corpos celestes, cujo movimento harmonioso expressa um tempo que é imagem do ser eterno. O cosmo enquanto totalidade viva e harmoniosa é a Alma do Mundo. Já no vivente mortal, ou seja, nos corpos de terra (soma géinon) unidos à alma, essa temporalidade imortal está inserida na espécie mortal, finita, mas fica preservada, apesar disso, sua ousía imortal (246c-d), numa mistura não sem consequências e aparentemente contraditória que voltaremos a discutir.
Se a alma é piloto dos seres viventes, conforme o Fédon, as Leis e o Fedro, se é semelhante ao uno, se é imortal e causa primeira, não é, todavia, totalmente autônoma se comparada aos seres dos quais ela foi gerada (ideias) e a um outro ser, que é o noûs, este sim o piloto da alma, nela enraizado mas não misturado a ela1, e se o homem fosse um ser muito próximo ao divino – mas não o é – o mais conveniente alimento para a alma seria aproximar-se e assemelhar-se continuamente ao noûs, proximidade que se manifestaria no exercício contínuo da contemplação da verdade (247d), o que, por vezes, o homem consegue.
Nessas primeiras abordagens, a alma começa a delinear-se como um ser passível de misturar-se com outras naturezas, superior às naturezas corpóreas pela imortalidade e autonomia no mover-se, mas inferior ao que, também imortal, não se move em direção a outros seres, não se mistura à physis mesmo no seu mais amplo sentido, nem está nela sequer por participação: as ideias e o noûs. O “perfil” da alma, afastado das realidades tangíveis e figuradas da physis e, ao mesmo tempo participante de modo sui generis dessa multiplicidade em função das uniões que pode firmar com vários corpos, como se fora um ser dionisíaco, embaraça nossa compreensão, obriga-nos a pensar a alma como realidade intermediária entre o absolutamente permanente e o absolutamente mutável, entre o Espírito e as ideias, e que acompanha a geração e corrupção. O Timeu será o próximo passo para tentarmos sair de tal embaraço.
Platão é claro nessa colocação sobre o noûs na alma, em várias passagens nos últimos diálogos. Apesar disso, alguns intérpretes, talvez mais inspirados em Aristóteles, creem que o noûs é uma das partes da alma, com o que não podemos concordar. É o caso, por exemplo, de F. Nuyens, in L’évolution de la psychologie d’Aristote, Louvain, 1973. ↩