O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959.
Desconcerta desde a primeira aparência sensível, no simples plano da máscara. Montaigne já se mostrava estupefato a este respeito: “Natureza lhe fêz injustiça”. Os manuais escolares tomam nota, com polidez, de sua feiúra transformada em lugar comum: para tanto basta olhar o busto do Museu de Nápoles. O exterior de Sátiro e de Sileno, descrito por Alcibíades numa passagem célebre do Banquete de Platão, não exclui, por ventura, a expressão de uma grande nobreza de alma? Mas não é com facilidade que resolvemos o problema dessa feiúra.
Um moderno colocou sabiamente, sobre o fácies de Sócrates, a etiqueta de “mongoloide”. Poderíamos ajuntar, para não ficar atrás, que é fácil reconhecer nele o temperamento sanguíneo de Hipócrates, ou, em termos de tipologia moderna, um “dilatado stênico”, com vestíbulos sensoriais largamente abertos, — grande boca, de lábios espessos, narinas rasgadas e olhos salientes. Mas isto não muda nada ao fato que tal fácies impressionou os contemporâneos de Sócrates como uma anomalia. Estes não interpunham, entre o interior e o exterior, o corte que nos parece necessário e chamavam Kalokagathoi, belos-e-bons, àqueles que nosso século XVII denominou “honnêtes”, considerando, destarte, a beleza como a manifestação sensível da virtude. Todavia, o homem confunde o fisiognomista que, pretendendo julgá-lo apenas baseado no inventário falaz dos traços de seu rosto, lavra o diagnóstico de estúpido e “mulherengo”, como o fêz Zopiron, divertindo às testemunhas e servindo para comentários complacentes da Antiguidade. Na realidade, porém, esse pescoço maciço, sinal de falta de inteligência, como se dizia, pertence ao homem mais sutil que jamais existiu e os traços carregados, a boca grosseira e o olhar de touro, ao homem mais livre das exigências da sensualidade. Entretanto, Sócrates assumiu, com brandura, a defesa do fisiognomista sírio, dizendo o seguinte: “Êle viu com justeza, mas eu me tornei senhor de tais desejos”.