John Finamore — Jâmblico e a teoria do veículo da alma

Excertos de um estudo de John Finamore, ”Iamblichus and the theory of the vehicle of the soul”, publicado na coleção ”American Classical Studies”, pela The American Philological Association em 1985.

Introdução

A teoria neoplatônica do veículo okema-pneuma é, como seus aderentes a percebem, baseada nos escritos de Platão e suportada por aqueles de Aristóteles. Se olharmos estas passagens a suportando, entretanto, descobrimos pouco com o que defender as afirmações dos neoplatonistas. Como Kissling afirma: “A teoria do okema-pneuma, como encontrada nos escritores neo-platônicos, representa a reconciliação de Platão e Aristóteles em um assunto que o primeiro nunca pensou e o último foi incapaz de definir inteligivelmente.

Como então os neoplatonistas conceberam o veículo da alma, e com que textos platônicos e aristotélicos conectaram sua crença?

O veículo pretende unir duas entidade diametralmente opostas: a alma incorpórea e o corpo corpóreo. É, portanto, nem material nem imaterial, mas um meio entre estes dois extremos. Filósofos posteriores afirmavam que o éter, mencionado em Epinomis 981c5-8 (trabalho que acreditavam ser de Platão) e nas obras de Aristóteles (por ex. De Caelo 270b20-26), era a substância compreendendo o veículo. Para os neoplatonistas, o veículo preenche três funções: abriga a alma racional em sua descida do reino noético (vide noûs) para o reino da geração; age como órgão da percepção dos sentidos e imaginação (vide phantasia); e, através de ritos teúrgicos, pode ser purificado e elevado, um veículo para o retorno da alma racional através do cosmos para os deuses.

Os neoplatonistas foram capazes de subscrever estas funções nos escritos de Platão e Aristóteles. Em Timeu 41e1-1, Platão diz que o Demiurgo “distribuiu cada (alma) para cada (estrela), e tendo as montado (as almas humanas) como em um veículo, mostrou-as a natureza do universo”. Para um neoplatonista, o veículo não é uma estrela mas o «okema-pneuma». Uma vez a alma situada em seu próprio veículo, ela desce para a geração. Neoplatonistas interpretam, de maneira similar, o mito do Fedro, no qual as almas dos deuses e humanos são comparadas a cocheiros viajando em coches ”okemata”, 247b1-3. Para neoplatonistas, cada uma destas passagens demonstra uma alma conectada a seu próprio veículo tanto no cosmos e na sua descida à terra.

A função imaginativa do veículo depende da teoria aristotélica (Da Geração 744a1-5). As percepções dos sentidos são impressas no veículo e podem por conseguinte serem processadas pela alma (note-se que aqui o veículo é intermediário entre os sentidos do corpo e a alma imaterial). Além do mais, em Da Geração 736b37-38, Aristóteles diz que o pneuma é “análogo ao elemento que as estrelas consistem”. Assim, é um simples passo para os filósofos posteriores combinar o pneuma de Aristóteles com o éter, o elemento das estrelas, e com a okema platônica, dentro do qual o Demiurgo colocou a alma.

Da doutrina da crescente materialidade da alma em sua descida, o veículo obtém sua terceira função teúrgica. Pois se o veículo se macula pelas adições materiais em sua descida, a purificação destas máculas materiais deve ser realizada antes da alma reascender. De acordo com a prática religiosa dos séculos II e IV, a purificação do veículo ocorre em atos rituais teúrgicos.

Plotino dá pouca importância à teurgia, e como resultado, é relativamente desinteressado com o okema-pneuma. Nunca usa o termo okema para se referir ao corpo etéreo da alma. No entanto, Plotino parece subscrever à crença em uma entidade como o veículo. Nas Eneada-IV, 3, 15, discutindo a descida da alma, Plotino afirma que quando a alma deixa o reino noético, vai “primeiro para o céu e recebe lá um corpo através do qual continua em mais corpos terrestres”. Aqui está a noção, comum em teorias do veículo tardias, de gradações ou envelopes de matéria agregando-se ao corpo primário. Plotino parece adotar o papel da purificação (katharsis) destes envelopes nas Eneada-III, 6, 5:

Mas a purificação da parte sujeita a afeições é o despertar de imagens não apropriadas e de não vê-las, e sua separação é efetivada por não se inclinar demais para baixo e não ter uma figura mental das coisas de baixo. Mas separando pode também significar se desvencilhar das coisas de que está separada quando não está estabelecida sobre um sopro vital (pneumatos) túrbido pela glutonia (gastrimargia) e saciado com carnes impuras, mas aquilo no que reside é tão fino que pode sobre ele viajar (ep autou okeisthai) em paz.

Aqui Plotino claramente menciona o pneuma em relação a sua purificação e a separação da alma do corpo. Parece que a alma pode existir pacificamente com seu pneuma purificado (embora Plotino esteja hesitante). O uso do verbo okeisthai implica que Plotino era familiar com o termo okema.

Em Eneada-IV, 3, 24, Plotino está de novo discutindo a separação da alma do corpo. Nas linhas 20-28, quando se preocupa com o castigo das almas no Hades, Plotino argumenta que almas com corpos recebem castigos corporais mas aquelas purificadas não são de modo algum dragadas (ephelkomenais) pelos corpos, mas existem inteiramente fora delas. Como nota Smith, o particípio ephelkomenais é comumente usado do veículo. Assim, parece que, em harmonia com interpretações neoplatônicas posteriores do Fedro 113d4-6, Plotino aceita o papel do pneuma como substrato para as almas punidas no Hades.

Plotino nada desenvolve em seus escritos sobre o “veículo da alma”, embora certamente tenha tido contato com esta doutrina àquela época. Coube a Porfírio e Jâmblico dar a doutrina um lugar certo no neoplatonismo.

Em seu tratado De Regressu Animae, Porfírio está interessado em incluir tal doutrina do “veículo da alma” em seu sistema filosófico, dando poder teúrgico exclusivamente sobre o veículo ele mesmo. O veículo é purificado por teurgia e a alma intelectual se separa do corpo não por teurgia mas por filosofia. Esta posição não é adotada por Jâmblico que enfatiza a teurgia como único meio de purificação da alma e de sua separação do corpo; filosofia somente é insuficiente.

A importância desta doutrina do veículo da alma é proporcional à ênfase dada à teurgia. Plotino, que pouco se interessa por tais ritos, não se preocupa com o veículo. Seu discípulo Porfírio, que é mais interessado em teurgia mas ainda considera tais ritos menos valiosos que a filosofia, és mais preocupado com o veículo e tem mais a dizer sobre seu papel. Jâmblico, discípulo de Porfírio, dá a maior importância para a teurgia e, como resultado, desenvolve uma teoria completa do veículo.

O objetivo do estudo de Finamore é exatamente recuperar o que Jâmblico legou sobre a questão do “veículo da alma” em seus escritos, tentando explicar o papel desta doutrina em sua filosofia, consultando fundamentalmente De Mysteriis, De Anima e outros fragmentos de comentários platônicos.

Resumo

I Jâmblico e Porfírio sobre a composição, a geração e o destino último do veículo.

II A conexão da alma humana a Deus

III A descida da alma
– O processo de descida
– As razões da descida da alma

IV O papel teúrgico do veículo na filosofia religiosa de Jâmblico

Conclusão

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