Física, primeira filosofia

A Física (que certamente começou além dela, numa metafísica com traços semelhantes aos de determinados mitos teocosmogônicos) é a primeira filosofia que a religião grega veio a ser. Por conseguinte, a mitologia grega é a mitologia emergente de uma religião, a cuja essência pertence o vir a ser, em primeiro lugar, uma física (ou melhor: uma physiomythia), i. é, certa imagem da natureza. Contudo, lembremo-nos, a física que a religião grega veio a ser, de Tales a Anaxágoras, não se extrai da mitologia, nem pela mais astuciosa das prestidigitações historiográficas; o mais que se pode dizer é que, em seus primeiros passos, ela decorre paralelamente, ou concorre com a mitologia, para resolver problemas que são os seus, não os da mitologia, que jamais teve problemas a resolver. Mas a mitologia, que é mitologia de uma religião que veio a ser física, também já é, ela mesma, de certo modo, uma física; teria de sê-lo, pois é a mitologia emergente de uma religião a cuja essência pertence o vir a ser uma física. Só que, sendo a mitologia simultaneamente o mesmo que a filosofia será sucessivamente – a física que a mitologia foi, não coincide com a física que a filosofia é; foi, sim, uma fisiologia que também era antropologia e também era teologia.

É claro que este «poder ter sido» uma fisiologia e uma antropologia e uma teologia, uma visão do natural e uma visão do humano e uma visão do divino – todas três em algo que ainda não pode ser teoria, depende de que as três coisas de que a mitologia nos proporcionava uma só imagem, fossem consideradas como uma coisa só.

O ser uma coisa só, na qual e pela qual a mitologia vive e sobrevive, é o que a filosofia negará em três momentos sucessivos: negando-lhe o que continha de humano e de divino, deu fundamento à Natureza; negando-lhe o que continha de humano e natural, deu fundamento à teorização de um Deus, separado do Homem e da Natureza (… «fit dolenda secessio»!).

Ainda não dizemos bem. Pois se, para a mitologia grega, uma só realidade havia, que, uma vez dividida e decomposta, teria de dar lugar ao pensar-se a existência distinta ou separada, do homem, da natureza e da divindade, então é que, para a mitologia, ainda não existia nem homem, nem divindade, nem natureza. Efetivamente, parece-nos que o acontecer, em mito que ainda não chegou a ser «mito», apresenta esta peculiar característica: seus personagens não são nem absolutamente deuses, nem absolutamente homens, nem absolutamente naturezas; e as ações que praticam não são nem absolutamente divinas, nem absolutamente humanas, nem absolutamente naturais – isto se não os observarmos com olhos da Medusa, que são os de um exacerbado racionalista, só empenhado no mister de pôr em evidência as contradições. Para a filosofia é que a ação natural, a ação humana e a ação divina são, ou tendem a ser, inteiramente o que são: naturidade, humanidade, divindade. Por isso, repetimos, a filosofia não decorre nem se deduz da mitologia. Por isso, acrescentamos, a alegorese não esgota o conteúdo ou a total significação de um mito. Com efeito, a alegoria consiste nisto: verter o que o mito diz simultaneamente no que a filosofia diz, dirá ou tenha dito sucessivamente. Exemplificando: no mito, no mito autêntico, não há um deus do mar, um deus do céu, um deus da terra; não há um deus do amor e um deus da morte; não há um deus da justiça e um deus da vingança – em suma, não há uma divindade exclusivamente adstrita a um elemento «natural» ou a uma emoção ou paixão «humana», e não há tal, porque na mitologia ainda não existe nem o Homem nem a Natureza. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)

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