Gazolla – Noção de alma na Grécia do século IV aC

Na bagagem cultural que envolve a noção de alma no século IV aC, Platão tem à disposição algumas representações, ou seja, a alma como algo constituído de certa materialidade pouco visível, ou ainda, como entidade imaterial, invisível e autônoma, por vezes considerada superior ao corpo e aprisionada nele por um tempo, esvaindo-se ou permanecendo após a corrupção do soma. Na primeira concepção, recolhida nos textos de Homero, ela é uma sombra (skiá) sem vida, uma imagem (eídolôn) que escapa do corpo, uma aparição (phásma) fugidia potencializada em união com o soma, cujo aspecto exterior (eídos) pode ser variável nessa semi-materialidade; ou ainda, como notou Rohde1, ela expressa os diversos atos da vontade e dos sentimentos, e acompanha outros significados que palavras como noûs (espírito, inteligência), boulê (vontade), métis (astucia) comportam, representação também presente em Homero e bastante explorada nos líricos. Um homem, enquanto vivo, deve todas essas manifestações à alma, um sopro de vida frio e volátil; e, paradoxalmente, ao morrer o corpo, nessa representação a alma perde sua força, extinguem-se suas potências que, na ausência do sustentáculo que é o soma, não podem mais se exercer. Apesar da duplicidade do ser humano, morada de duas naturezas diferentes, a relação entre soma e psychê nessa concepção arcaica é muito próxima, quase interdependente não fora a sobrevivência da alma ao corpo.

Na representação da alma enquanto invisível e autônoma, concernente aos cultos a Dioniso e entre os órficos, o duplo corpo-alma que caracteriza o humano permanece, mas a alma é distinta do corpo o suficiente para poder libertar-se dessa “prisão” quando tomada de “vertigem”, nos ritos dionisíacos, ou da manía, no orfismo. A relação alma-corpo já não guarda boa proximidade, já não é uma boa mistura, e a valorização da morte nessas seitas advém da crença na autonomia e superioridade da alma, abrindo uma dimensão para outra vida, pois nesta o corpóreo está presente como um invólucro que deve ser abandonado, numa clara concepção religiosa: re-ligar a alma à instância que lhe é adequada, e é este o sentido da morte como libertação2. Se a ideia de purificação da alma inexiste no texto homérico, é fundamental na visão do orfismo e do dionisismo, apesar das diferenças que essas duas seitas guardam entre si. A visão órfica aproxima-se muito da exposição do Fédon quanto à desvalorização da vida corpórea e do rompimento que realiza com o sensível para atingir o conhecimento noético. No entanto, essa aproximação tem vínculos ético-políticos aos quais Platão nunca deixa de estar atento. Afinal, se o sensível não é o fundamento para o verdadeiro conhecimento, é, no entanto, o solo sem o qual o homem não poderia entrar no movimento do conhecer.

No orfismo, especificamente, a união do homem com o divino sendo possível na mania, na fuga de sua alma do corpo com o auxilio dos ritos, transforma-o num semideus pelos laços que consegue manter com um ser divino que o transcende. A manía é um estado catártico, purificatório e, seguindo a “roda das reencarnações”, a alma virá a purificar-se totalmente na sucessão de diferentes vidas. É no orfismo que a imortalidade da alma se estrutura como o que de mais importante deve ser acreditado, pois nessa crença o homem pode e deve transcender sua limitação corpórea. Esse ponto será retomado por Platão, não no sentido religioso e cronológico-espacial que o orfismo deixa entrever, mas dentro de uma argumentação lógica, onde a transcendência implica na busca da verdade através da ascese contemplativa, quer da perspectiva do conhecimento, quer da perspectiva ético-política. Por isso mesmo, é importante notar que o mito do destino das almas exposto no Fédon bem como as colocações socráticas sobre o corpo, a alma e a purificação, são de inspiração órfica e, tradicionalmente, tais afirmações foram lidas como marca da dicotomia platônica corpo-alma. Para nós, parece ser mais um paradigma para outra teoria bem diversa sobre a alma e sua imortalidade, e sobre o corpo, como teremos ocasião de mostrar.

Essas representações mítico-religiosas e físicas expostas no Fédon, fazem contraponto à tentativa de definição socrática de alma. Aquelas mal definem a noção de alma, antes afirmam seu modo de aparição, seus poderes e seu valor. Platão é cuidadoso ao afastá-las – ou será melhor dizer, ao mudar o caminho mítico-religioso, imagético, e as explicações físicas, para o propriamente filosófico – pela via argumentativa, não só porque Sócrates já fora condenado pela introdução de novos deuses na cidade e corrupção dos jovens, como também porque a verbalização de algumas noções, de difícil acesso ao conhecimento, impõe limites sempre lembrados pelo filósofo, como é o caso não só da alma, mas do noûs e da ideia de Bem, noções fundamentais na sua reflexão e difíceis de serem apanhadas no discurso.

Ciente disso, Platão deve definir a alma afastando-se dessas representações geralmente aceitas, e colocando-se como herdeiro do saber dos primeiros físicos, entre eles, principalmente, Heráclito, Parmênides e Pitágoras. A indagação no Fédon amplia-se, pois o que pode haver de semelhante entre as afirmações poético-religiosas citadas, a própria definição platônica e as seguintes afirmações pitagóricas, por exemplo: “…creem (os pitagóricos) que o número (arithmón) é o princípio e matéria (hylên) das coisas, e afecções (páthe) e disposições (héxeis)… a modificação dos números sendo a justiça, outra a alma e a inteligência (psychê kaínous), outra a oportunidade (kairós), e de modo semelhante quase todas as demais coisas…”?3 Ou ainda: “…Dizem (os pitagóricos) que a alma é um poder de harmonia (tén harmonían krásiri), síntese de contrários (synthesin enantíorí), ao contrário do corpo composto de contrários.”4 A vertente pitagórica que tematiza a noção de alma é aparentemente bastante laica se aproximada das outras citadas e pertencentes ao cotidiano do grego comum.

Se Platão parece religioso em alguns momentos de sua obra – como talvez o seja com relação à ideia de Bem e de noûs expostas em alguns diálogos, principalmente na República, no Timeu e nas Leis – não aparece sê-lo com relação à alma. Como ele tenta, então, dizer o que ela é? Aproxima-se de seus mestres, de Pitágoras em particular? Ou de Heráclito que afirma no fragmento 45: “…Limites de alma não os encontraria, todo caminho percorrendo; tão profundo lógos ela tem”?

GAZOLLA DE ANDRADE, Rachel. Platão: O Cosmo, o Homem e a Cidade. Um Estudo Sobre a Alma. Petrópolis: Vozes, 1994.


  1. Psique, p. 93, ed. Labor. 

  2. É claro que o orfismo e o próprio dionisismo são bem mais complexos do que a síntese apresentada, mas aprofundá-los extrapolaria os limites deste trabalho. O interesse em citar essas seitas está limitado à relação que a alma e o corpo têm para o próprio Platão

  3. Aristóteles, in Metafísica, A, 5, 985, 986. 

  4. Ib., A, 4, 407b.