gnothi seauton

Gobry

gr. gnothi seauton: “Conhece-te a ti mesmo.” Fórmula atribuída pela primeira vez por Antístenes a Tales (DL., I, 40). Segundo Demétrio de Falero, seu autor seria Quílon de Lacedemônia (Müllach, fr. 3). E também encontrada em Pítaco (Sentenças, 16). Sócrates viu-a inscrita no frontispício do templo de Apolo em Delfos (Xenofonte, Mem., IV, II, 24). v. Epicteto [Leituras, I, XVIII, 17).

Sorabji

Segundo Sorabji (2005 p. 161), há um tema no Primeiro Alcibíades que é oposto à certeza de Descartes que uma pessoa conhece-se a si mesma. Ela só pode fazer inferências quanto às mentes de outros. De acordo com o Primeiro Alcibíades, o olho vê ele mesmo melhor vendo seu reflexo no olho de outro (132c-133c). Esta discussão parece ter influenciado Aristóteles (Ética a Nicômaco 9.9, 1169b33-1170a4); pseudo-Aristóteles (Magna Moralida 2.15, 1213a10-26, e possivelmente Ética a Nicômaco 7.12, em seus relatos do valor da amizade. A Magna Moralia repete a ideia de olhar a um reflexo. O ponto é que é agradável ser ciente de si mesmo. Mas é difícil, ou impossível, como demonstrado na Magna Moralia, nossa cientidade1 maior das falhas dos outros. Posto que o amigo é um segundo si mesmo, em estando ciente do amigo se está ciente de si mesmo. E isto é tanto mais agradável se as ações do amigo são boas, pois então vê-se boas ações como suas próprias (Ética a Nicômaco). O Primeiro Alcibíades (133c) vai adiante, embora parte possa ser uma interpolação: a alma conhece a si mesma melhor olhando para sua parte mais divina, sabedoria, e para Deus ele mesmo.

Volpi

O conhecimento de si é o começo da sabedoria. “Conhece-te a ti mesmo!” (γνῶθι σαυτóν) é o ensinamento de vida atribuído a um dos Sete Sábios, talvez até um preceito de origem divina para a auto-realização. Estava inscrito na entrada do templo de Apolo em Delfos, o “umbigo do mundo”, o ponto em que duas águias libertadas por Júpiter nas extremidades da terra, e direcionadas para o seu centro, haviam se encontrado.

Ao mesmo tempo é a máxima em que se fundamenta a lição de vida que a filosofia desde sempre pretendeu transmitir: “Todos os homens têm a possibilidade de conhecer a si mesmos”, já afirma Heráclito (fr. 116). Mas é sobretudo Sócrates quem faz da arte de conhecer a si mesmo o eixo de toda a sabedoria filosófica, como testemunha Platão no Alcibíades Maior, em que o princípio délfico é retomado e transformado na regra áurea do cuidado de si. Não por acaso, na tradição iconográfica a sabedoria será muitas vezes representada como uma figura feminina que segura na mão o precioso instrumento em que é possível olhar-se e conhecer-se: o espelho.

No entanto, o conhecimento de si é também o erro de Narciso. O vaidoso dobrar-se sobre si, de quem, apaixonado pela própria beleza, vê unicamente a si mesmo e não consegue entrar em relação com a realidade. Nesse sentido, conhecer apenas a si mesmo significa permanecer prisioneiro da própria imagem.

Através dos séculos2, o motivo do conhecimento de si, em seu duplo valor, chega até a era moderna, em que é retomado e desenvolvido especialmente pela filosofia moral. Até Goethe3, que se mostra cético sobre a origem divina do lema délfico, por estar convencido de seu caráter enganoso:

Erkenne dich! – Was soll das heißen?
Es heißt: sei nur! und sei auch nicht!
Es ist eben ein Spruch der lieben Weisen,
Der sich in Kürze widerspricht.
Erkenne dich! Was hab’ich da für Lohn?
Erkenne ich mich, so muß ich gleich davon.
Als wenn ich auf den Maskenball käme
Und gleich die Larve vom Angesicht nähme.“Conhece a ti mesmo! – Que significa? / Significa: seja! / e ao mesmo tempo não seja! / É um lema dos sábios antigos / que na sua brevidade se contradiz. / Conhece a ti mesmo! E o que ganho com isso? / Se me conheço, devo desaparecer logo. / É como se viesse a um baile mascarado / para tirar-me logo a máscara do rosto.”

SCHOPENHAUER, Arthur. A Arte de Conhecer a Si Mesmo. Organização e ensaio de Franco Volpi. Tr. Jair Barboza e Silvana Cobucci Leite. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2009 (epub)

Foucault

Gostaria então de tomar como ponto de partida uma noção sobre a qual creio já lhes ter dito algumas palavras no ano passado4. Trata-se da noção de “cuidado de si mesmo”. Com este termo tento traduzir, bem ou mal, uma noção grega bastante complexa e rica, muito frequente também, e que perdurou longamente em toda a cultura grega: a de epimeleia heautou, que os latinos traduziram, com toda aquela insipidez, é claro, tantas vezes denunciada ou pelo menos apontada5, por algo assim como cura sui6. Epimeleia heautou é o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se consigo, etc. Pode-se objetar que, para estudar as relações entre sujeito e verdade, é sem dúvida um tanto paradoxal e passavelmente sofisticado, escolher a noção de epimeleia heautou para a qual a historiografia da filosofia, até o presente, não concedeu maior importância. É um tanto paradoxal e sofisticado escolher esta noção, pois todos sabemos, todos dizemos, todos repetimos, e desde muito tempo, que a questão do sujeito (questão do conhecimento do sujeito, do conhecimento do sujeito por ele mesmo) foi originariamente colocada em uma fórmula totalmente diferente e em um preceito totalmente outro: a famosa prescrição délfica do gnothi seauton (“conhece-te a ti mesmo”)7. Assim, enquanto tudo nos indica que na história da filosofia – mais amplamente ainda, na história do pensamento ocidental – o gnothi seauton é, sem dúvida, a fórmula fundadora da questão das relações entre sujeito e verdade, por que escolher esta noção aparentemente um tanto marginal, que certamente percorre o pensamento grego, mas à qual parece não ter sido atribuído qualquer status particular, a de cuidado de si mesmo, de epimeleia heautou? Gostaria pois, durante esta primeira hora, de deter-me um pouco na questão das relações entre a epimeleia heautou (o cuidado de si) e o gnothi seauton (o “conhece-te a ti mesmo”).

A propósito do “conhece-te a ti mesmo”, pretendo fazer uma primeira e muito simples observação, referindo-me a estudos realizados por historiadores e arqueólogos. De todo modo, é preciso reter o seguinte: sem dúvida, tal como foi formulado, de maneira tão ilustre e notória, gravado na pedra do templo, o gnothi seauton não tinha, na origem, o valor que posteriormente lhe conferimos. Conhecemos (e voltaremos a isto) o famoso texto em que Epicteto diz que o preceito “gnothi seauton” foi inscrito no centro da comunidade humana8. De fato, ele foi inscrito, sem dúvida, no lugar que constituiu um dos centros da vida grega e depois9 um centro da comunidade humana, mas com uma significação que certamente não era aquela do “conhece-te a ti mesmo” no sentido filosófico do termo. O que estava prescrito nesta fórmula não era o conhecimento de si, nem como fundamento da moral, nem como princípio de uma relação com os deuses. Algumas interpretações foram propostas. Há a velha interpretação de Roscher, de 1901, em um artigo do Philologus10, no qual lembra que, afinal, todos os preceitos délficos endereçavam-se aos que vinham consultar o deus e deviam ser lidos como espécies de regras, recomendações rituais em relação ao próprio ato da consulta. Conhecemos os três preceitos. O meden agan (“nada em demasia”), de modo algum, segundo Roscher, pretendia designar ou formular um princípio geral de ética e de medida para a conduta humana. Meden agan (“nada em demasia”) quer dizer: tu que vens consultar não coloques questões demais, não coloques senão questões úteis, reduzi ao necessário as questões que queres colocar. O segundo preceito, sobre os engye (as cauções)11, significa exatamente o seguinte: quando vens consultar os deuses, não faças promessas, não te comprometas com coisas ou compromissos que não poderás honrar. Quanto ao gnothi seauton, sempre segundo Roscher, significa: no momento em que vens colocar questões ao oráculo, examina bem em ti mesmo as questões que tens a colocar, que queres colocar; e, posto que deves reduzir ao máximo o número delas e não as colocar em demasia, cuida de ver em ti mesmo o que tens precisão de saber. Interpretação bem mais recente que esta é a de Defradas, de 1954, em um livro sobre Os temas da propaganda délfica12. Defradas propõe outra interpretação, mas que, também ela, mostra, sugere que o gnôthi seautón de modo algum é um princípio de conhecimento de si. Segundo Defradas, estes três preceitos délficos seriam imperativos gerais de prudência: “nada em demasia” nas demandas, nas esperanças, nenhum excesso também na maneira de conduzir-se; quanto às “cauções”, tratava-se de um preceito que prevenia os consulentes contra os riscos de generosidade excessiva; e, quanto ao “conhece-te a ti mesmo”, seria o princípio [segundo o qual] é preciso continuamente lembrar-se de que, afinal, é-se somente um mortal e não um deus, devendo-se, pois, não contar demais com sua própria força nem afrontar-se com as potências que são as da divindade.

FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982). Tr. Márcio Alves da Fonseca & Salma Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 4-6

Gerson

O sujeito dos desejos e atos intelectuais, em termos gerais, é gerado junto com os próprios estados psíquicos. Por exemplo, descobrimos que estamos com fome e, nesse momento, o sujeito que está com fome é gerado; descobrimos que, no meio de alguma situação prática, temos uma crença sobre o que fazer, e o sujeito desta crença é gerado. Ao usar a palavra “gerado”, pretendo enfatizar a concretude do sujeito e sua distinção de um sujeito mais abstrato ou mesmo teórico. Não há desejos ou crenças sem um sujeito para eles, assim como não há desejos ou crenças sem objetos intencionais, um ponto ao qual voltarei abaixo. O sujeito não existe a menos ou até que o estado exista. Tanto o sujeito quanto o objeto intencional são gerados no momento (ou quase no momento) em que o estado é gerado. E quando o desejo é satisfeito ou a crença existente não existe mais, seus súditos desaparecem. Assim, termos para sujeitos como “eu” e “meu” são indexais. Ou seja, eles são puramente contextuais.

Naturalmente, isto não significa que não haja desejos ou crenças disposicionais; significa apenas que, se estes também devem ter um sujeito, esse sujeito não é obviamente idêntico ao sujeito dos desejos e crenças ocorrentes. Pois, se fossem idênticos, apelos normativos seriam impossíveis. Ou seja, se o sujeito de um desejo disposicional fosse idêntico ao sujeito de um desejo ocorrente, não haveria sentido em apelar aos outros desejos ou crenças de alguém para não satisfazer esse desejo; de fato, não haveria possibilidade de alguém resistir ao próprio desejo. Pois tal apelo seria, presumivelmente, feito para o que é do verdadeiro interesse deste alguém ou o que este alguém realmente deseja. Mas se esse sujeito é apenas o sujeito do desejo ocorrente, esse apelo poderia ser apenas para um sujeito hipotético de um futuro desejo ocorrente, não para o sujeito real daquilo que é o desejo disposicional. Não faria sentido apelar para um sujeito futuro de um desejo ocorrente, uma vez que esse sujeito está funcionalmente relacionado ao estado em que se encontra. Dizer que não se deve ter o desejo que se tem é assumir que tal exortação é para um sujeito que não seja o sujeito do desejo, assumindo, é claro, que esses desejos putativos são para o próprio bem. Da mesma forma, que se acredite que não se deveria satisfazer o próprio desejo é apelar para um sujeito outro daquele sujeito deste desejo. Mas este sujeito só pode ser outro daquele do sujeito do desejo corrente. Também deve, em certo sentido, ser idêntico a um sujeito não relacionado ao sujeito do desejo; caso contrário, o fenômeno da fraqueza da vontade não existiria. Se alguém pode desejar tomar drogas e também desejar não ter a vontade de tomá-las, então o sujeito do desejo original não pode ser inequivocamente idêntico ao sujeito.

Se o conhecimento de si mesmo fosse o conhecimento do sujeito de um desejo ou crença ocorrente, o conhecimento de si seria a coisa mais fácil de se alcançar no mundo. A aquisição do conhecimento de si implicaria nada mais do que a consciência dos desejos ocorrentes. No entanto, o conhecimento de si que deve ser particularmente valioso e difícil de obter deve ser o conhecimento de um si que não seja o sujeito de um desejo ou crença ocorrente. Como se deve alcançar esse conhecimento de si?

GERSON, Lloyd P.. “Self-Knowledge and the Good”, in AMBURY, James & GERMAN, Andy, KNOWLEDGE AND
IGNORANCE OF SELF IN PLATONIC PHILOSOPHY. Cambridge: Cambridge University Press, 2019, p. 17-18.

 


 


  1. Prefiro traduzir aware por ciente e awareness por cientidade, ao invés do comum, consciente e consciência, que considero palavras muito sobrecarregadas atualmente. 

  2. Cf. Pierre Courcelle, Connais-toi toi-même. De Socrate à Saint Bernard, 3 vols., Paris, Études augustiniennes, 1974-1975. 

  3. Johann Wolfgang Goethe, Sprüche, in: Goethes Werke, Hamburger Ausgabe, org. por Erich Trunz, tomo 1.1: Gedichte und Epen, 16.a ed., Munique, 1996, p. 308. 

  4. As aulas de 1981 não incluem desenvolvimentos explícitos sobre o cuidado de si. Em contrapartida, nelas se encontram longas análises sobre as artes de existência e os processos de subjetivação (aulas de 13 de janeiro, de 25 de março e de 1 de abril). De modo geral, entretanto, o curso de 1981 continua, por um lado, a versar exclusivamente sobre o status dos aphrodisia na ética pagã dos dois primeiros séculos de nossa era e, por outro, mantém a ideia de que não se pode falar de subjetividade no mundo grego, quando o elemento ético se deixa determinar como bíos (modo de vida). 

  5. Todos os textos importantes de Cícero, Lucrécio e Sêneca sobre estes problemas de tradução estão reunidos por Carlos Lévy em sequência ao seu artigo: “Du grec au latin”, in Le Discours philosophique, Paris, PUF, 1998, p. 1145-54. 

  6. “Se tudo faço no interesse de minha pessoa é porque o interesse que deposito em minha pessoa tudo precede (si omnia propter curam mei fado, ante omnia est mei cura)”. (Sénèque, Lettres à Lucilius, t. V, livro XIX-XX, carta 121,17, trad. fr. H. Noblot, Paris, Les Belles Lettres, 1945 [mais adiante: referência a esta edição], p. 78). 

  7. Cf. P. Courcelle, Connaîs toi-même, de Socrate à Saint Bernard, Paris, Études augustiniennes, 1974, 3 tomos. 

  8. Épictète, Entretiens, III, 1,18-19, trad. fr. J. Souilhé, Paris, Les Belles Lettres, 1963 [mais adiante: referência a esta edição], p. 8. Cf. a análise deste mesmo texto na aula de 20 de janeiro, segunda hora. 

  9. Para os gregos, Delfos era o centro geográfico do mundo (omphalos: umbigo do mundo), onde se haviam encontrado as duas águias enviadas por Zeus a partir das bordas opostas da circunferência da Terra. Delfos tornou-se um centro religioso importante desde o fim do século VIII a.C. (santuário de Apolo de onde a Pítia emitia oráculos) e assim permaneceu até o fim do século IV d.C., ampliando então sua audiência para todo o mundo romano. 

  10. W. H. Roscher, “Weiteres uber die Bedeutung des E [ggua] zu Delphi und die ubrigen grammata Delphika”, Philologus, 60,1901, p. 81-101. 

  11. Esta é a segunda máxima: “engya, parà d’ate”. Cf. a declaração de Plutarco: “Eu não poderei explicar-te, enquanto não tiver aprendido com estes senhores o que querem dizer seu Nada em demasia, seu Conhece-te a ti mesmo e esta famosa máxima, que impediu tantas pessoas de se casar, que tomou outras tantas desconfiadas, e outras mudas: comprometer-se traz infelicidade (engya, parà d’ate)” (Le Banquet des sept sages, 164b in Oeuvres morales, t. II, trad. fr. J. Defradas, J. Hani & R. Klaerr, Paris, Les Belles Lettres, 1985, p. 236). 

  12. J. Defradas, Les Thèmes de la propagande delphique, Ibris, Klincksieck, 1954, cap. III: “La sagesse delphique”, pp. 268-83. 

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