Górgias 460a-461b — Ação da Retórica não tem a universalidade que lhe é atribuída

Sócrates — Basta! Falaste muito bem. Se tiveres de fazer de alguém um orador, forçosamente essa pessoa terá de conhecer o que é justo e o que é injusto, quer o tenha aprendido antes, quer aprenda depois contigo.

Górgias — Perfeitamente.

Sócrates — E então? Quem aprender a arte de construir é arquiteto, não é verdade?

Górgias — Sim.

Sócrates — E quem aprender música é músico?

Górgias — Exato.

Sócrates — E quem aprender medicina é médico? E com tudo o mais não passa exatamente o mesmo: quem aprender alguma coisa fica sendo o que esse conhecimento faz dele?

Górgias — Sem dúvida nenhuma.

Sócrates — O homem justo pratica ações justas.

Górgias — Sim.

Sócrates — Será, portanto, forçoso que o orador seja justo e, como tal, queira praticar ações justas.

Górgias — Parece que sim.

Sócrates — E nunca o justo há de querer cometer alguma injustiça.

Górgias — Forçosamente.

Sócrates — De acordo com o nosso raciocínio, o orador necessariamente terá de ser justo.

Górgias — Sim.

Sócrates — Nunca, por conseguinte, há de querer o retórico cometer uma injustiça.

Górgias — Nunca.

Sócrates — Deves estar lembrado do que há momentos disseste do pedótriba, que não devemos afastá-lo nem expulsá-lo da cidade, no caso de não fazer o pugilista uso lícito dos punhos. Da mesma forma dá-se com o orador: vindo a usar indevidamente a retórica, não devemos culpar seu professor nem expulsá-lo da cidade, porém o próprio criminoso que fez mau uso da retórica. Isso foi dito ou não?

Górgias — Foi.

Sócrates — E não admitimos, também, que o referido orador nunca poderá cometer injustiça? Ou não?

Górgias — É certo.

Sócrates — Ficou também esclarecido, Górgias, na primeira parte do nosso diálogo, que a retórica não se ocupa com discursos relativos ao par e ao ímpar, porém com os que se relacionam com o justo e o injusto, não é verdade?

Górgias — Sim.

Sócrates — Ao ouvir-te afirmar semelhante coisa, entendi que jamais poderia a retórica ser algo in justo, pois todos os seus discursos tratam exclusivamente da justiça. Mas quando, pouco depois, te ouvi dizer que o orador pode usar injustamente a retórica, fiquei surpreso, e foi por ter notado contradição em tuas palavras que fiz aquela declaração, de só levarmos adiante nossa conversa no caso do considerares como eu que é mais vantajoso ser refutado; na hipótese contrária, seria preferível dá-la por encerrada. Posteriormente, no decurso de nossa investigação, tu mesmo poderás verificar que voltamos a reconhecer não ser possível ao orador fazer uso indevido da retórica ou consentir em ser injusto. Pelo cão! para nos safarmos desta enleada, Górgias, será pre ciso uma conversa muito longa.