Górgias 463e-465e — Alma e corpo e suas artes próprias

GórgiasBem, deixa isso e declara-me por que disseste que a retórica é um simulacro de uma parte da política.

Sócrates — Vou tentar explicar o que a meu ver é a retórica. Se não for o que penso, o nosso Polo me refutará. Denominas alguma coisa corpo e alma?

Górgias — Como não?

Sócrates — E não admites, também, que haja em ambos uma condição de bem-estar?

Górgias — Sem dúvida.

Sócrates — É uma condição de aparente bem-estar, mas que o não seja? O que digo é o seguinte: Há muita gente que aparenta saúde, visto não ser fácil a todo o mundo perceber que se encontra em condições precárias, com exceção do médico ou do professor de ginástica.

Górgias — É certo o que dizes.

Sócrates — No corpo e na alma digo que a mesma coisa se passa, o que faz que o corpo e a alma pareçam estar em boas condições, embora na realidade não o estejam.

Górgias — É isso mesmo.

Sócrates — E agora vou ver se me será possível explicar com mais clareza meu pensamento. Como são dois domínios diferentes, para mim há também duas artes. À que se relaciona com a alma dou o nome de política; para a que diz respeito ao corpo não posso encontrar uma denominação única, por dividir novamente em duas partes o todo uniforme da cultura do corpo: a ginástica e a medicina. Do mesmo modo, distingo na política a legislação, que se contrapõe à ginástica como a medicina se contrapõe à justiça. Visto relacionarem-se as artes de cada grupo com os mesmos objetos, apresentam todas elas pontos de contacto: a medicina com a ginástica, e a justiça com a legislação; mas em alguma coisa diferem umas das outras. Ora, percebendo que há essas quatro artes, que só visam ao bem-estar do corpo e da alma, duas a duas, respectivamente, a adulação, não porque chegasse a conhecê-las, digo, mas por simples conjectura, dividiu-se em quatro, assumiu a forma de cada uma das partes e se faz passar pelas artes cuja aparência usurpou. Com os interesses superiores do homem não se preocupa no mínimo, mas vale-se do prazer como de isca para a ignorância, enganando-a a ponto de parecer-lhe de muito maior valia. Foi assim que a culinária se insinuou na medicina, pretendendo conhecer os mais saudáveis alimentos para o corpo, de forma que se o médico e o cozinheiro tivessem de entrar num concurso em que crianças fossem juízes, sobre quem mais entendesse da excelência ou da nocividade dos alimentos, o cozinheiro ou o médico, este morreria de fome. Chamo a isso bajulação, Polo — é a ti que me dirijo neste momento — e da pior espécie, pois só visa ao prazer, sem preocupar-se com o bem. Nego que seja arte; não passa de uma rotina, pois não tem a menor noção dos meios a que recorre, nem de que natureza possam ser, como não sabe explicar a causa deles todos. Não dou o nome de arte ao que carece de razão. Se quiseres contestar o que afirmei, estou pronto a defender meus argumentos.

Na medicina, como disse, insinuou-se a bajulação culinária; na ginástica, seguindo o mesmo processo, a capelista, falsa, nociva, ignóbil e indecorosa, que, por meio das formas, das cores, dos esmaltes e da indumentária, de tal modo seduz os homens que, andando sempre estes no encalço da beleza estranha, descuidam da que lhes é própria e que só se obtém por meio da ginástica. Para não ser prolixo, vou usar a linguagem dos geômetras — talvez assim possas acompanhar-me — para dizer que o gosto da indumentária está para a ginástica como a culinária está para a medicina, ou melhor: a indumentária está para a ginástica assim como a retórica está para a legislação; e também: a culinária está para a medicina como a retórica está para a justiça. Essa, como disse, é a diferença natural de todas elas; mas, em consequência da vizinhança, sofistas e oradores se misturam e passam a ocupar-se com as mesmas coisas, sem que eles próprios saibam qual seja, ao certo, seu fim, e muito menos os homens. De fato, se a alma não estivesse sobreposta ao corpo e este se governasse a si mesmo, e se aquela não tivesse discernimento e não separasse da medicina a culinária, e apenas o corpo tivesse de julgar, de acordo com os prazeres que pudesse auferir de cada uma delas, predominaria, meu caro Polo, aquilo de Anaxágoras — isto é matéria de teu conhecimento — a saber: todas as coisas se confundiriam sem que fosse possível distinguir a medicina, a saúde e a culinária. Ficaste sabendo, agora, o que penso a respeito da retórica: é a antítese para a alma do que a cozinha é para o corpo.