Górgias 472d-474c — Não expiar sua falta é a maior infelicidade

Sócrates — Pois afirmo que isso é impossível; nesse ponto, estamos em desacordo. Muito bem. Quem comete injustiça poderá ser feliz, na hipótese de vir a ser punido e castigado?

Polo — De forma alguma, pois nesse caso seria infeliz ao máximo.

Sócrates — E se porventura o criminoso não recebesse nenhuma punição, de acordo com o que disseste, seria feliz?

Polo — É o que afirmo.

Sócrates — Pois segundo a minha maneira de pensar, Polo, o homem injusto ou que comete injustiça, de qualquer forma é infeliz, e mais infeliz será, ainda, se não for punido, porém algum tanto menos se for castigado e punido pelos deuses e pelos homens.

Polo — É absurdo, Sócrates, o que afirmas.

Sócrates — Vou tentar, companheiro, convencer-te da minha maneira de pensar. Considero-te meu amigo. São os seguintes os pontos sobre que não concordamos. Examina tu mesmo. Em qualquer parte de minha exposição, afirmei que é pior cometer alguma injustiça do que ser vítima de injustiça.

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Tu, porém, que é ser vitima de injustiça.

Polo — Isso mesmo.

Sócrates — Disse, também, que são infelizes as pessoas que cometem injustiça, o que foi refutado por ti.

Polo — Sim, por Zeus.

Sócrates — Pelo menos, Polo, pensas desse modo.

Polo — E com razão, quero crer.

Sócrates — Por tua vez, afirmaste serem felizes os que cometem injustiça, no caso de escaparem ao castigo.

Polo — Exatamente.

Sócrates — E eu digo que são esses, precisamente, os mais infelizes, sendo-o um pouco menos os que recebem castigo. Não queres rebater também esse ponto?

Polo — Essa proposição é mais difícil de refutar do que a outra, Sócrates.

Sócrates — Não é bem isso, Polo; é impossível; a verdade nunca poderá ser contestada.

Polo — Que disseste? Se um indivíduo é apanhado e detido na tentativa criminosa de apoderar-se do poder, é posto a tratos e mutilado; queimam-lhe os olhos, e depois de lhe infligirem as maiores e mais variadas torturas, e de ver ele que a mulher e os filhos são tratados da mesma maneira, por último é colocado na cruz ou besuntado com breu e queimado vivo: esse indivíduo será mais feliz do que se não for descoberto, conseguir tornar­-se tirano e, como senhor absoluto da cidade, continuar durante toda a vida a fazer o que bem lhe parecer, objeto de inveja e de admiração tanto dos seus concidadãos como dos estrangeiros? Isso é que consideras impossível de refutar?

Sócrates — Tornas a lançar mão de um espantalho, meu bravo Polo, porém não me refutas. Há pouco recorreste a testemunhas. De qualquer forma, ajuda-me a avivar a memória sobre uma coisinha de nada. A tentativa injusta de apoderar-se do poder, não foi isso o que disseste?

Polo — Exatamente.

Sócrates — Pois eu sou de parecer que nem um nem outro pode ser considerado mais feliz, nem o que alcançou injustamente a tirania, nem o que foi preso e castigado, porque entre dois desgraçados nenhum pode ser feliz; todavia, o mais infeliz é o que escapou e se tornou tirano. Que é isso, Polo, estás rindo? Será essa uma nova modalidade de refutação, rir de alguém que afirma alguma coisa, sem opor-lhe qualquer argumento?

Polo — Não te consideras refutado, Sócrates, depois de afirmares coisas que nenhum homem poderia admitir? Basta perguntares a qualquer dos presentes.

Sócrates — Não sou político, Polo; sim, no ano passado, fui eleito para o conselho, e como minha tribo exercesse o pritanato e eu tivesse de recolher os votos, pus-me a rir, sem saber como fazer. Não me concites, portanto, a contar os votos dos presentes, e se não dispões de melhor processo de refutação, cede -me o teu lugar, conforme sugeri há pouco, e faze a experiência da argumentação que me parece indicada. De minha parte, só sei aduzir a favor do que afirmo uma única testemunha, justamente a pessoa com que estiver argumentando, sem dar maior importância à opinião da maioria; só conheço o modo de obter esse único voto; às demais pessoas não me dirijo. Vê, portanto, se concordas em deixar que eu conduza a argumentação e em responder a minhas perguntas. Estou convencido de que tanto eu como tu, e os homens em geral, consideramos pior cometer uma injustiça do que sofrê-la, como é pior não ser punido do que sê-lo.

Polo — Pois eu afirmo que nem eu nem ninguém compartilha essa opinião. Sendo assim, preferirias sofrer alguma injustiça a praticá-la?

Sócrates — Tal qual como tu e como todo o mundo.

Polo — De jeito nenhum; nem eu, nem tu, nem ninguém.

Sócrates — Estás resolvido a responder-me?

Polo — Perfeitamente. Estou ansioso para saber o que vais dizer.