Górgias 478e-479e — O caso de Arquelau

Sócrates — E não virá a ser, precisamente, quem, tendo cometido os maiores crimes e procedendo da maneira mais injusta, não é advertido, nem condenado, nem punido, como disseste que se dá com Arquelau e os tiranos em geral, os oradores e potentados?

Polo — Parece que sim.

Sócrates — O procedimento dessas pessoas, meu caro, pode ser comparado ao de quem sofresse das mais graves doenças e se arranjasse de modo que não pagasse a penalidade ao médico pelos vícios do corpo e se furtasse ao tratamento, por ter medo, como as crianças, dos cautérios e das incisões, visto serem dolorosos. Não te parece que seja assim?

Polo — Perfeitamente.

Sócrates — Por desconhecerem o valor da saúde e do vigor corpóreo. Coisa semelhante, Polo, de acordo com o que assentamos até agora, é o que talvez aconteça com os que se furtam ao castigo. Só veem o que nele é doloroso, mas são cegos para o que tem de saudável, por ignorarem que é muito mais de lastimar a convivência com uma alma doente do que com um corpo nas mesmas condições, uma alma, digo, corrompida, injusta e ímpia. Por isso, esforçam-se por todos os meios para não virem a sofrer castigo nem ficarem livres do maior dos males, cuidando apenas de acumular riquezas, angariar amigos e falar com o maior grau possível de persuasão. Se estamos certos, Polo, no que argumentamos até aqui, percebes o que se infere de nossa conversa, ou queres tu mesmo tirar a conclusão?

Polo — Se não fores de parecer diferente.

Sócrates — Não ficou demonstrado que o maior mal é a injustiça e o procedimento injusto?

Polo — É evidente.

Sócrates — E mais: que a maneira de alguém vir a ficar livre desse mal é cumprir a pena combinada?

Polo — Parece que sim.

Sócrates — E que o não cumprimento da pena implica a continuação do mal?

Polo — Sim.

Sócrates — Logo, cometer injustiça é o segundo mal em importância; o maior de todos é cometer alguma injustiça e não ser punido.

Polo — Parece que sim.

Sócrates — E não era em torno desse ponto, amigo, que girava nossa discussão? Consideravas Arquelau feliz e por haver perpetrado os maiores crimes sem sofrer penalidade alguma, enquanto eu, de minha parte, era de parecer que não só Arquelau, mas qualquer indivíduo que não for punido pelos crimes praticados deve ser considerado em especial como o mais infeliz dos homens, e que em qualquer circunstância quem comete alguma injustiça é mais infeliz do que a vitima dessa injustiça, como também é mais infeliz quem se exime do castigo do que quem cumpre a pena cominada. Não foi isso que eu disse?

Polo — Foi.

Sócrates — E não ficou demonstrado que eu estava com a razão?

Polo — Ficou.