Cálicles — Dize-me uma coisa, Querefonte: Sócrates está falando sério ou é brincadeira?
Querefonte — Penso, Cálicles, que ele está falando com toda a seriedade. Mas o melhor será dirigires-te a ele mesmo.
Cálicles — Pelos deuses, é também o que desejo. Dize-me, Sócrates, devemos acreditar que estás falando sério, ou é brincadeira? Se é sério e for verdade tudo o que disseste, então a vida dos homens está completa mente revirada, e nós agimos, ao que parece, exatamente ao contrário de como fora preciso proceder.
Sócrates — Cálicles, se não houvesse entre os homens identidade de sentimentos, comuns a todos, embora com diferenças individuais, não seria fácil a ninguém explicar aos outros o que se passa consigo mesmo. Digo isso, por haver observado que eu e tu nos encontramos presentemente nas mesmas condições, pois ambos somos duplamente apaixonados: eu, de Alcibíades, filho de Clínias, e da filosofia, e tu, do demo ateniense e de Demo, filho de Pirilampo. Ora, tenho observado que, apesar de seres um orador veemente, digam o que disserem os teus amados, e seja qual for a sua maneira de expressar-se, nunca te atreves a contradizê-los, mas a todo o instante mudas de parecer, ora assim ora assado. Se na assembleia emites alguma opinião e o demo ateniense se manifesta em contrário, na mesma hora te retratas e passas a afirmar o que ele quer; de igual modo te comportas com relação a esse belo rapaz, o filho de Pirilampo: nunca tens coragem de opor-te às opiniões e às palavras de teu apaixonado; de forma que se alguém se admirasse das coisas absurdas que afirmas cada vez que falas para ser agradável a ambos, poderias retrucar-lhe, se quisesses dizer a verdade, que se ninguém puder impedir os teus amados de dizerem o que dizem, não poderás também evitar de falar como falas. A mesma coisa, agora, terás de preparar-te para ouvir de mim, sem te admirares de eu falar como falo; o que te cumpre é fazer que minha amada, a filosofia, pare também de falar. E ela, caro amigo, que não cessa de dizer-me o que me ouves expor neste momento, sendo de notar que ela é muito menos volúvel do que os outros amados; o filho de Clínias, em verdade, ora fala de um jeito, ora de outro; mas a filosofia diz sempre a mesma coisa. Foi ela quem disse tudo isso que te pareceu absurdo; estavas presente quando ela se manifestou. Por conseguinte, ou terás agora de refutá -la, como observei há pouco, para provar que cometer alguma injustiça e ficar impune não é o maior dos males, ou então, no caso de deixares sem réplica semelhante assertiva, pelo cão, deus dos Egípcios, jamais, Cálicles, poderá Cálicles concordar contigo, vindo a ficar em desarmonia contigo para o resto da vida. Eu, pelo menos, meu caro, sou de parecer que me fora preferível ter a lira desafinada e desarmônica, ou um coro por mim dirigido, sim, e até mesmo não concordar com minhas opiniões a maioria dos homens, e combatê-las, a ficar em desarmonia comigo mesmo e vir a contradizer-me.