Górgias 488b-491d — Análise da noção de superioridade

Sócrates — Voltemos a considerar o assunto do começo: que é o que tu e Píndaro entendeis por justiça natural? O direito do mais poderoso de tomar à viva força os bens do mais fraco, ou o de dominar o melhor sobre o pior, ou de ter mais o nobre do que o que vale menos? É outro o teu conceito de justiça, ou fui fiel em minha definição?

Cálicles — Foi isso mesmo que eu disse há momentos e ainda sustento.

Sócrates — No teu modo de ver, o homem que consideras melhor é o mesmo que o mais forte? Há pouco não apreendi bem o teu pensamento. Será que denominas melhores os mais fortes, sendo preciso, portanto, que os mais fracos se submetam aos mais fortes, como quer parecer-me que o demonstraste, ao afirmares que as grandes cidades atacam as pequenas por direito natural, por serem mais poderosas e mais fortes, no pressuposto de que mais poderoso, mais forte e melhor são conceitos que se equivalem, ou dar-se-á o caso de poder ser melhor o inferior e mais fraco, ou ser mais poderoso o pior? Ou será uma única definição a do melhor e a do mais poderoso? Explica-me com clareza se há diferença ou identidade entre o mais poderoso, o melhor e o mais forte?

Cálicles — Então, digo-te francamente que tudo isso é uma só coisa.

Sócrates — E a maioria, não é por natureza mais forte do que um só homem, já que ela institui leis contra este, conforme há pouco te expressaste?

Cálicles — Como não?

Sócrates — Logo, as leis da maioria são também leis dos mais fortes?

Cálicles — Perfeitamente.

Sócrates — E também dos melhores, pois, de acordo com o que disseste, os mais fortes também são melhores.

Cálicles — Sim.

Sócrates — Então, por natureza são belas essas leis, por serem leis dos mais fortes.

Cálicles — Exato.

Sócrates — E a maioria não é também de parecer, conforme não faz muito o declaraste, que a justiça consiste na igualdade e que é mais feio praticar injustiça do que ser vítima de injustiça? É assim mesmo, ou não? Acautela-te, agora, para também não ficares acanhado. A maioria pensa ou não pensa desse modo, a saber, que é justo ter tanto quanto os outros, não mais, e que é mais feio cometer injustiça do que vir a sofrê-la? Não me prives de tua resposta, Cálicles, neste passo, pois, no caso de estares de acordo comigo, sentir-me-ei reforçado por teu intermédio, por haver alcançado o assentimento de pessoa tão judiciosa.

Cálicles — Sim, a maioria pensa desse modo.

Sócrates — Não é, portanto, apenas em virtude da lei que é mais feio praticar algum ato injusto do que ser vítima de injustiça, e que a justiça consiste na igualdade, mas também por natureza. Por conseguinte, é possível que não tivesses dito antes a verdade e me acusasses sem razão, quando afirmaste que a natureza e a lei se contrapõem e que eu disso tinha pleno conhecimento no desenrolar da discussão, porém procedia de má fé, apelando para a lei, quando alguém falava segundo a natureza, ou para a natureza, quando se referia à lei.

Cálicles — Este homem não para de falar despropósitos. Diz -me uma coisa, Sócrates: não te envergonhas, na idade a que chegaste, de lançar-te à caça de palavras e, se, alguém comete um lapso de linguagem, considerares isso um achado de importância? Pensas, realmente, que o que eu disse não foi que é a mesma coisa o mais forte e o melhor? Ou achas que sou de parecer que se se reunir uma malta de escravos ou de indivíduos da mais heterogênea procedência, carecentes inteiramente de préstimo, salvo serem dotados de força muscular, o que então disserem deverá ser considerado

Sócrates — Está bem, sapientíssimo Cálicles; é assim que pensas?

Cálicles — Perfeitamente

Sócrates — Há muito tempo, prezado amigo, eu suspeitava que era mais ou menos isso que tu entendias por mais forte, e se insistia em minhas perguntas era para ficar sabendo com segurança a tua maneira de pensar. É evidente que não podes ser de opinião que dois homens são melhores do que um, nem que teus escravos são melhores do que tu , só por terem mais força. Então, voltemos para o começo e explica-me o que entendes por melhor, uma vez que não se trata do mais forte. Porém instrui-me, admirável amigo, com um pouco mais de brandura, para que eu não tenha de fugir de tua escola.

Cálicles — Estás com ironia, Sócrates.

Sócrates — Não, Cálicles; juro por Zeto, a quem tanto recorreste há pouco para troçar de mim. Afinal, quais são os que consideras melhores?

Cálicles — Os de mais valor, é o que digo.