Sócrates — Não percebes que só estás empregando palavras e que nada esclareces? Poderás dizer-me se por melhor e superior entendes o mais judicioso? Ou que vem a ser?
Cálicles — Sim, por Zeus; é isso mesmo que digo. Perfeitamente.
Sócrates — De acordo, portanto, com tuas palavras, muitas vezes pode dar-se que um indivíduo sensato valha mais do que mil destituídos de senso, cabendo-lhe, por isso, comandar, como aos demais obedecer, e ter mais o que manda do que os comandados. Era isso, quero crer, que te propunhas dizer — não estou caçando palavras —a ser verdade que um homem sozinho vale por mais de mil.
Cálicles — Foi isso mesmo que eu disse. Pois, segundo penso, decorre do direito natural que o melhor e mais sensato comande e tenha mais do que os inferiores.
Sócrates — Para aí um pouco! Que achas do seguinte: Se estivéssemos, como agora, reunidos num mesmo lugar, muitos homens e dispuséssemos em comum de grande cópia de alimentos e de bebidas, indivíduos da mais variada constituição, uns fortes, outros fracos, e que entre nós, na qualidade de médico, um fosse mais entendido nessas questões, tendo de ser naturalmente, mais forte do que uns e mais fraco do que outros: esse indivíduo, por ser o mais sábio do grupo, seria também o melhor e o mais forte a esse respeito?
Cálicles — Sem dúvida nenhuma.
Sócrates — Nesse caso, ele terá de ganhar maior porção das provisões do que nós, por ser o melhor de todos? Ou, pelo próprio fato de sua autoridade, precisará fazer a distribuição de tudo aquilo? Porém no que respeita ao consumo das provisões e ao uso para o seu próprio corpo, terá de acautelar-se para não gastar mais do que os outros e não vir a ser punido; sua porção será maior ou menor do que a dos demais, conforme o caso, mas, se for o mais fraco do grupo, há de ser a menor, Cálicles, apesar de toda a sua superioridade. Não estou certo, caro amigo?
Cálicles — Falas de bebidas, comeres, médicos e outras tolices. Não é a isso que me refiro.
Sócrates — De qualquer forma, não admitiste que o mais sábio é o melhor? Responde-me sim ou não.
Cálicles — Sim.
Sócrates — E não afirmaste que o melhor terá de ter uma porção maior?
Cálicles — Não, porém, de comidas e bebidas.
Sócrates — Compreendo; talvez de roupas; e quem souber tecer com mais perícia obterá um manto mais amplo e andará por toda a parte com as melhores e mais vistosas roupas.
Cálicles — Roupa, coisa nenhuma!
Sócrates — Então, com relação a sapatos, é fora de dúvida que obterá maior porção quem for mais entendido e os fabricar melhor. Decerto o sapateiro fará seus passeios com sapatos maiores do que as outras pessoas e terá deles uma grande coleção.
Cálicles — A que vem agora esse sapato! Quanta bobagem estás a dizer!
Sócrates — Bem; se não te referes a essas coisas, talvez queiras dizer o seguinte: o lavrador de grandes conhecimentos, que saiba cuidar da terra, obterá, sem dúvida, maior porção de sementes do que os outros, e empregará o maior número possível delas em seu terreno particular.
Cálicles — Falas sempre do mesmo jeito, Sócrates.
Sócrates — Não apenas do mesmo jeito, Cálicles, como também a respeito das mesmas coisas.
Cálicles — Pelos deuses! Só falas em sapateiros, pisoeiros, cozinheiros e médicos, como se isso tivesse alguma coisa que ver com a nossa discussão.