Sócrates — Não denota baixa estirpe, Cálicles, a franqueza com que desenvolves teu argumento, pois dizes com toda a clareza o que os outros pensam, porém não se atrevem a manifestar. Só te peço que não cedas em nenhum ponto, para que realmente s e torne manifesto como é preciso viver. Dize-me uma coisa: afirmas que não deve refrear as paixões quem quiser ser o que deseja ser, porém deixar que cresçam elas ao máximo, procurando satisfazê-las de todo o jeito, e que nisso consiste a virtude?
Cálicles — E o que sustento.
Sócrates — Erram, portanto, os que apregoam que felizes são os que de nada necessitam.
Cálicles — Nesse caso, as pedras e os cadáveres seriam felicíssimos.
Sócrates — Ainda assim, tal como a defines, terrível coisa é a vida. Não me admirarei se falou certo Eurípides, quando disse: Quem nos dirá que não é morte a vida, e estar morto, viver?
É possível, até, que estejamos mortos; eu próprio já ouvi certo sábio declarar que estamos realmente mortos e temos por sepultura o corpo, e que a porção da alma em que residem os desejos é facilmente sugestionável e conduzida de um lado para o outro, de onde veio a um sujeito espirituoso e criador de mitos — provavelmente siciliano ou itálico — jogando com as palavras, a ideia de dar o nome de pipa à alma, por deixar-se facilmente encher de sugestões; os infensos ao estudo chamou de não iniciados, e a porção da alma dos não iniciados em que se localizam as paixões, justamente por ser incontentável e nada reter, comparou a um tonel furado, por isso mesmo que nunca revela saciedade. Ao contrário de tuas conclusões, Cálicles, essa pessoa nos mostra que no mundo das sombras — o mundo invisível, conforme ele se exprime — os mais infelizes são os não iniciados, pois carregam água para o tonel furado num crivo também cheio de furos. Por esse crivo ele entendia a alma, como me explicou quem me contou a história. Comparou a alma dos insensatos a um crivo que é cheio de furos, pois nada consegue reter, visto carecer de fé e memória. Tudo isto, sem dúvida, é bastante caprichoso, mas é quanto chega para ilustrar o que eu desejara de mostrar-te, se me fosse possível, que deverias resolver-te a mudar de opinião, e em vez de uma vida intemperante e insaciável preferires a bem ordenada e que se satisfaz com o que o dia presente lhe oferece. Mas, em que ficamos? Cheguei a convencer-te, a ponto de aceitares a opinião de que os indivíduos comedidos são mais felizes do que os intemperantes? Ou nada consegui, e ainda mesmo que te apresentasse mil histórias desse tipo, em nada alterarias a tua maneira de pensar?
Cálicles — É mais certo, Sócrates, o que disseste por último.
Sócrates — Assim sendo, vou propor-te outra imagem da mesma procedência que a anterior. Vê se te é possível comparar essas duas modalidades de existência — isto é, a temperante e a incontinente — ao caso de dois homens que particularmente possuíssem muitas barricas. Um as tinha em bom estado e cheias de vinho, ou de mel, ou de leite, afora muitas mais, também cheias de líquidos diferentes, colhidos em fontes escassas e de difícil acesso, e adquiridos com trabalho e dificuldade. Porém uma vez cheio o vasilhame, não se preocuparia o nosso amigo com renovar-lhes o conteúdo, deixando-se ficar tranquilo a esse respeito. O outro indivíduo disporia das mesmas fontes que o primeiro, nas quais poderia abastecer-se, embora com dificuldade; mas todos os seus tonéis eram quebradiços e apresentavam rachas, o que o obrigava a enchê-los dia e noite sem interrupção, para não vir a sofrer o pior. Ora bem, se me aceitas a comparação entre o procedimento desses dois indivíduos e aquelas duas maneiras de viver, dirás que a vida do intemperante é mais feliz do que a do moderado? Consegui convencer-te com minha exposição, de que a vida do indivíduo equilibrado é melhor do que a do licencioso? Ou não?
Cálicles — Não, Sócrates; não me convenceste. O tal homem dos tonéis cheios já não sente nenhum prazer. Isso é o que se chama, como disse há pouco, viver como as pedras; depois de cheio, não sente nem prazer nem dor. A vida verdadeiramente agradável consiste em prover os tonéis ao máximo.
Sócrates — Mas se for muito o que despejamos neles, muito também é o que se escoa, sendo forçoso haver grandes furos para dar vazão ao que sai.
Cálicles — Exato.
Sócrates — Então, o que descreves é a vida de uma tarambola, não dos mortos nem das pedras. Responde -me ao seguinte: dizes que há fome e que, havendo fome, é preciso comer?
Cálicles — É isso mesmo.
Sócrates — E sede, também? E, havendo sede, beber?
Cálicles — Sim, e que também é preciso ter todos os outros apetites e poder satisfazê-los, para sentir prazer com isso e viver feliz.