Sócrates — Então prossigamos, e começa por declarar-me se o que eu disse há pouco a estes aqui te parece acertado, O que lhes disse foi que para mim a culinária não é arte, porém simples rotina, o que não se dá com a medicina, que é arte, firmado em que ela só trata da doença depois de estudar a sua natureza e conhecer a maneira por que atua, e no fato de poder apresentar a razão de ser de tudo isso, a medicina, enquanto a outra, que só visa ao prazer, procede sem arte na prossecução de sua finalidade, e não examina nem a natureza do prazer nem sua causa, por maneira inteiramente irracional, por assim dizer, e sem calcular coisa alguma, só alcançando pela prática e pela rotina uma noção vaga do que é costume fazer-se, com o que, precisamente, proporciona prazer. Inicialmente, concito-te a considerar se há fundamento no que eu disse e se não existirão processos idênticos com relação à alma, alguns, de fato, baseados em arte e preocupados em promover os mais elevados interesses da alma, outros negligenciando de todo esses interesses e só cuidando, como no caso anterior, do prazer da alma e de que modo possa ser alcançado, mas sem distinguir entre os prazeres bons e os maus, com o que não se preocupam no mínimo, pois têm em vista apenas a produção do prazer, pouco importando se é para o bem ou para o mal. A meu ver, Cálicles, existem esses processos, que não sei definir a não ser como adulação, tanto em relação ao corpo como à alma, ou onde quer que sejam empregados com vistas à produção do prazer, sem considerarem se é em proveito ou detrimento próprio. A esse respeito, como te comportas: estás de acordo com nossa maneira de pensar ou a rejeitas!
Cálicles — Não, não rejeito; pelo contrário: concordo, não só para ser agradável a Górgias, como para que chegues ao fim de tua demonstração.
Sócrates — E isso é válido só para uma alma, não o sendo para duas ou para muitas?
Cálicles — Não; vale também para duas e para muitas.
Sócrates — Sendo assim, é possível o desejo de agradar a um grande número de almas, sem cogitar de seus verdadeiros interesses.
Cálicles — Creio que sim.