hapanta ta onta (Cornford)

Sem dúvida, no texto aristotélico, hápanta tà ónta refere-se diretamente ao lado de cá, digamos, às coisas do mundo empírico, e não ao lado de lá — ao princípio de todas elas. Mas se a posição de um princípio é o que permite falar de todas as coisas, como se fossem uma só, então o princípio, seja ele qual for, torna-se no único representante credenciado de hápanta tà ónta. «Todas as coisas, em uma só», outra maneira de dizer «princípio», que para Tales teria sido a água, e para Anaxímenes há-de ser o ar, foi designado por Anaximandro pelo nome que lhe pareceu mais adequado, ápeiron, substantivo neutro, composto do alpha privativum e de um vocábulo derivado de peírar («limite»), pelo que obtemos, finalmente, a proposição: «todas as coisas em uma só» é «uma coisa sem limites», com o seu reverso evidente e intuitivo, dado certificado pela observação do mundo empírico, de que «todas as coisas têm limites». O que os não tem é a «coisa só», o periékhon, o «envolvente» ou «circundante» de todas as coisas limitadas. Neste ponto há que prevenir o mal-entendido que não pode deixar de surgir da leitura das primeiras linhas da notícia aristotélica: «a maioria dos primeiros filósofos acreditaram que os únicos princípios de todas as coisas são os de índole material (tàs en hylês eídêi)» não se interpreta, sem perigo de incorrer no mais grosseiro dos anacronismos, como se os primeiros filósofos tivessem professado o materialismo, entendido em qualquer dos sentidos que se possam e queiram atribuir à palavra. O contexto só permite depreender deste passo da Metafísica que, na opinião de Aristóteles, os primeiros filósofos só conheciam a primeira das suas quatro causas, não distinguindo, portanto, em qualquer substância ou indivíduo, matéria, eficiência, forma e finalidade. Mas, ainda assim, estamos certos de que não pequena surpresa seria a de Anaximandro, se lhe houvessem dito que tamanha era a deficiência do princípio a que dera o nome de ápeiron, e tanto maior, quanto mais certo parece que lhe atribuíra, com ulteriores determinações, o ser «imortal», «incorruptível», «tudo governar» e «tudo envolver», sendo, afinal, todo o «divino» (Deichgräber, 1940). Só quanto a um dos termos da acusação talvez possamos ficar seguros de que não discordaria; o ápeiron, inteiramente destituído de limites internos (mantemos, apesar de Kirk e outros, a necessidade de empregar esta adjetivação dos limites) era o indiferenciado, o «informe» (Deichgräber: «Gestaltslos»). Não nos parece nem sequer verosímil que um pensador capaz de ascender ao grau de abstração de que testemunha um princípio instituído por total negação do que, em primeiro lugar, caracteriza todas as coisas existentes no mundo empírico (os limites, as diferenças), não tivesse consciência de que projetara, em redor dele, um outro mundo, imperceptível, justamente pela razão inversa da perceptibilidade do primeiro; e com este agravo, de o acento valorativo recair com a maior intensidade nesse mundo circundante, em virtude dos supramencionados atributos, que o erguem à dignidade de um, ou do único, ser divino. Tudo quanto existe, ficou dividido em dois: o que é princípio, e o que do princípio devêm. Quem poderá dizer que a metafísica não nasceu com o primeiro passo da especulação filosófica? E qual é esse passo? Já o dissemos: pensar que «todas as coisas, em uma só» é «uma só coisa, sem limites». O Indiferenciado é a primeira cifra da codificação filosófica do «fascinante mistério do horizonte». Preferimos designá-lo assim, pois sempre cabe uma justa hesitação onde e quando quer que surja a pergunta insistente, sobre a verdade que se atinge ou o erro que se comete, pretendendo deduzir o conceito da imagem, o filosofema do mitologema. O problema contorna-se mediante a concepção, apenas enunciada, de que possa haver a identidade de um desconhecido projeto, do qual só se conhecem duas projeções diversas em planos funcionais diferentes, quer dizer, na concepção de uma complementaridade da mitologia e da filosofia. Deste modo, como as projeções de qualquer corpo não se deduzem uma da outra, mas ambas do corpo projetado, evitamos a infindável discussão acerca das origens mitológicas da filosofia, no início de seu desenvolvimento histórico. Exemplos mais recentes da tarefa ingrata são as numerosas páginas de Cornford (1952) e de Hölscher (1968) a propósito de Anaximandro, obras, aliás, admiráveis, sob outros aspectos.