Excerto de PLATÃO. Sobre a Inspiração Poética (Íon) e sobre a Mentira (Hípias Menor). Tradução do grego, introdução e notas de André Malta. Porto Alegre: LP&M, 2007.
O Hípias menor, escrito no mesmo início do século IV a.C., vai pôr em prática exatamente isso que o Íon constantemente menciona, mas não exemplifica: a crítica literária. A personagem histórica Hípias, da segunda metade do século V a.C. e presente em outra obra platônica, o Hípias maior (assim chamada por ser mais extensa e complexa), representa o típico sábio da época – o chamado “sofista” –, versado nas mais diversas áreas do conhecimento (matemática, física, gramática, música, artes manuais) e detentor de um extraordinário poder de comunicação; essas habilidades lhe permitiam, em suas andanças, cobrar alto pelos seus ensinamentos – sobretudo da arte que era mais útil aos cidadãos da Atenas democrática, a Retórica, que visava a contradição, persuasão e vitória de determinado ponto de vista, em âmbito pessoal, político ou jurídico. Além dessas atividades, Hípias, assim como outros renomados e ricos sábios da Grécia Clássica, devia ainda realizar com frequência a interpretação da poesia antiga (épica e lírica), que tinha lugar de destaque nas conferências sofísticas.
No diálogo, que se inicia logo após sua apresentação nas Olimpíadas (quando discursara sobre o caráter dos principais heróis homéricos), ele é levado justamente a esclarecer para Sócrates a distinção que fizera entre Odisseu e Aquiles, este considerado o melhor e aquele o mais multiforme dos guerreiros que partiram para Troia. O que quis dizer Hípias com “multiforme”; Aquiles não é multiforme?, pergunta Sócrates. Citando um passo importante do canto 9 da Ilíada, o sofista vai esclarecer que Aquiles nos é apresentado como simples e verdadeiro por Homero, enquanto Odisseu, inversamente, como mentiroso. Esclarecido o sentido em que foi empregado multiforme (como sinônimo de mentiroso), Sócrates pergunta a Hípias se o verdadeiro e o mentiroso podem ser a mesma pessoa, a que Hípias responde negativamente: eles são opostos, tal qual Aquiles se opõe a Odisseu.
A partir daí, Sócrates vai contra o senso comum e demonstra que mentir – em todas as áreas (cálculo, geometria, astronomia…) – implica ter capacidade e sabedoria, e por consequência implica saber a verdade: dessa forma, o mesmo que diz a verdade é o que mente, e portanto não há diferença entre aqueles heróis. Na sequência, comentando outros trechos da Ilíada, Sócrates argumenta que, se Aquiles e Odisseu dizem mentiras, mas o primeiro involuntariamente e o segundo voluntariamente (como defende Hípias), é na realidade Odisseu o herói superior – porque é o sábio, e não o ignorante, que mente voluntariamente. Também praticar, com o corpo, o que é sofrível ou vergonhoso voluntariamente (correr mal, desafinar, coxear) é melhor do que fazê-lo involuntariamente. Aplicado o raciocínio técnico ao campo moral e à alma, chega-se à conclusão absurda de que quem pratica voluntariamente a injustiça é o homem sábio e capaz.
Pelo que foi dito, percebemos que, além do contexto literário, da estrutura indutiva (em que se caminha do particular para o geral) e da conclusão insatisfatória, há muitos outros pontos de contato entre um diálogo e outro, que favorecem sua leitura em conjunto. O rapsodo Íon, por exemplo, surge claramente identificado com a figura do sofista, menos presunçoso, é verdade, mas se julgando também dono de vasta habilidade e conhecimento, que expõe igualmente por meio de uma conferência ou “demonstração” (pública ou privada). Hípias, por sua vez, se iguala ao rapsodo pela exegese homérica e autoridade moral, pela larga obtenção de proveitos e pela enorme admiração que suscita – sem falar de sua incrível capacidade de memorização. Do ponto de vista temático, a noção de força, potência ou capacidade (dynamis) estabelece um elo importante entre os textos: se no primeiro, sendo divina, ajuda a desvalorizar o poeta (sempre incapaz) e sua pretensa sabedoria, assumindo um aspecto negativo, no segundo ela fundamenta o conhecimento humano e a possibilidade de dizer mentiras e verdades, sendo tomada então pelo lado positivo.
Como de hábito, Sócrates refuta as posições dos interlocutores pelo método dialético, o que significa dizer que procura minar, através da conversa interrogativa e exaustiva, em que aponta contradições, o edifício aparentemente sólido erigido em mera opinião, o que resulta em perplexidade e aporia. O dono do saber começa a andar em terreno movediço, e sobressai a sabedoria de Sócrates, que vive reafirmando sua ignorância (“Que maior prova de ignorância do que divergir de homens sábios”?). Essa ironia, presente sobretudo no Hípias menor (de onde vem a citação), é resultado de um recorrente jogo de inversões, como a que Sócrates opera entre Aquiles e Odisseu: o verdadeiro vira mentiroso, e o mentiroso, sábio. Em que medida esse jogo promove, como no caso dos heróis homéricos, a distinção, e também a identificação, entre os oponentes Hípias e Sócrates, Sócrates e Íon? As contradições aqui não deixam de ser esclarecedoras e de estimular, no leitor, novas investigações sobre a aparência e a verdade.