O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme
A piedade de Sócrates é tão inquietante para Atenas como o é o respeito do ironista. Neste Ateniense o respeito pelas leis, usos e tradições é manifesto e sincero. Mas entre este respeito e aquele que se inculcou ao adolescente-modelo conforme Aristófanes (o jovem de peito largo e nádegas fornidas, cheio de sentenças dos velhos poetas, de modéstia e de respeito para com os anciãos, proposto nas Nuvens), medeia uma distância insignificante, a que existe entre a inconsciência e a consciência.
A ironia socrática, apesar de se ter tornado extremamente banal em nossa cultura, continua, entretanto, um pouco enigmática para nós. Todos nós sabemos o que seja uma ironia interrogativa: menos um método (a palavra é enorme), que certa maneira de empregar o discurso indagador. Mas o que mais ainda? “Existem duas maneiras de interrogar”, escreve o padre Festugière: “A daquele que realmente não sabe e quer saber e a daquele que sabe, mas finge ignorar, e leva o interlocutor, que imagina saber, a confessar que, na realidade, nada sabe. Há uma maneira inocente e outra sábia. Por minha parte, creio firmemente que a de Sócrates era inocente” u “Noutras palavras, a insciência de Sócrates é real e a profissão que dela faz, sincera e não apenas fingida. Como compreender, se assim não fora, o impasse em que vão dar certos diálogos da juventude platônica, tais como Hípias menor e Euthyphron? Como justificar de outra maneira o protesto do Charmide? “Caro Critias, tratas-me como se eu pretendesse saber as coisas sobre as quais te interrogo e como se dependesse de mim concordar contigo. Entretanto, não é nada disto. Eu procuro. Examinamos juntos cada problema que se apresenta. E se procuro é porque eu mesmo não sei”. Todavia, se a interrogação é absolutamente inocente, se dela eliminarmos todo sorriso, já não é mais ironia, e, então, não poderemos mais compreender a reputação de “escarnecedor insolente” (como diz o Alcibíades do Banquete), atribuída a esse homem que passa a vida a gracejar e que, permanecendo trocista até o fim, zomba docemente mesmo dos próprios juizes. E se o interlocutor toma, sem razão, por fingida sua afirmação de não-saber (“tens, dirá o tirano Chariclés, colega de Crítias, o hábito de formular perguntas quando sabes geralmente o que é”), é justamente porque reconhece em Sócrates um virtuose da aporia e do embaraço intelectual em que são lançados os ingênuos e os tolos pela interrogação bem conduzida. Também neste ponto Sócrates pertence à família intelectual dos sofistas, com a diferença, porém, que ele não tem segundas intenções. Ao interrogar um adolescente, o sofisma Eutidemo lança a Sócrates o seguinte aparte: “Responda o que responder, este jovem será apanhado na armadilha”, o que deixa entrever muito bem a distância que separa o ironista do mistificador. Como os profissionais da “antilogia”, Sócrates quer fender as certezas maciças dos homens adormecidos e desempenhar como eles o papel de despertador de inquietação. Mas mesmo os melhores dentre eles (um pouco como aconteceu mais tarde com os céticos, seus descendentes intelectuais) parecem ter fracassado naquilo em que Sócrates obteve êxito. A razão disto foi ignorarem o diálogo, ignorando também o interlocutor, que consideram apenas como um adversário que deve ser reduzido ao silêncio e não como um colaborador na pesquisa comum. O mistificador está condenado a não buscar, na inquietação que desperta, senão um triunfo pessoal, mas o ironista se apaga atrás da ironia, transformada em atitude comum dos que participam no diálogo desprendendo-se, pouco a pouco, dos pensamentos implícitos e das evidências apressadas, alijando, numa palavra, toda a carga de falso saber. Isto torna as almas disponíveis às exigências do logos, simultaneamente discurso e razão.
A inocência de Sócrates consiste, pois, em querer para o interlocutor a mesma liberdade que se conferiu a si próprio. Para alcançar tal resultado, usa um processo que se opõe tanto à gravidade dogmática dos grandes fabricantes de tratados e de poemas filosóficos, como os Anaxágoras e os Parmênides, quanto a facúndia dos sofistas, cuja agilidade mistificadora não exclui o lado sério e um pouco massudo. Os ironistas, como diz Aristóteles pensando em Sócrates, falam diminuindo a importância de tudo. Há, portanto, razão de sobra para desconcertar a velha Atenas. Não que a cidade ignore o gracejo, pois seu povo é o mais zombeteiro que existe. Mas o exercício do escárnio é regulamentado por um estatuto especial e pertence quase exclusivamente ao domínio das sátiras, das bufonarias e pantominas do teatro cômico. A maneira de Sócrates não se enquadra, por conseguinte, nos hábitos atenienses. Por outro lado, dado o pendor para as disputas e chicanas, a cidade estava muito melhor preparada a receber as argumentações dos sofistas que os ataques da ironia. Para dizer a verdade, o homem nos desconcerta um pouco também a nós, que naturalmente esperaríamos do Sileno, do ser dionisíaco, algo de diferente desta lucidez leve e sorridente, que forma, ao mesmo tempo, a faceta apolínea e a missão de Sócrates.