(Excertos de Rachel Gazolla de Andrade, “Platão, o Cosmo, o Homem e a Cidade”)
No livro X das Leis, talvez a última obra de Platão, um comentário sobre a alma é apresentado tendo como pano de fundo a visão dos “físicos”, onde a alma é compreendida a partir das noções de geração e corrupção de todas as coisas da physis, visão que, utilizada também no Fédon com o sentido de mostrar a mortalidade da alma quando da fala de Cebes, fora rejeitada por Sócrates por ter sido pensada como forma elementar, corpórea, semelhante ao fogo ou à água. No livro X, Platão, utilizando-se da figura indeterminada de um ateniense como fez no Sofista com o estrangeiro, estabelece uma visão da alma na perspectiva do movimento de todas as coisas. Ao indagar sobre a natureza e virtude da alma (892a), ele parte do princípio de sua anterioridade com relação às coisas corpóreas, invertendo, desse modo, a reflexão firmada pelos pensadores da physis, ditos “empiristas”, de que ela é engendramento apreendido pelos sentidos, e seus elementos constitutivos, mesmo invisíveis, são fundamento do engendramento. Para Platão, as coisas da natureza visível e que aprendemos a nomear como o pesado, o leve, o duro, o mole, o ligeiro etc, são posteriores ao que torna possível conhecê-las. Nessa inversão as coisas que sabemos pesadas, duras ou ligeiras, não são conhecidas porque visíveis e tangíveis, mas porque a alma existe e lhes é anterior. Como demonstrar tal anterioridade?
Em primeiro lugar, há uma ampliação da noção de physis determinada pela anterioridade da gênese da alma. Diz Platão:
“… O que eles (os físicos) entendem por natureza é o que engendrou as primeiras existências; se, pois, pudermos demonstrar que a alma é uma destas primeiras existências, com mais razão que o fogo ou o ar, teremos direito a dizer que a alma, pelo fato mesmo dessa antiguidade de seu nascimento, existe, com mais razão que todo o resto, por natureza. Tal conclusão fica justificada se pudermos demonstrar que a alma é mais antiga que o corpo; do contrário, não será demonstrável” (893a).
Platão quer demonstrar a natureza como aquilo pelo qual todas as coisas vêm a ser, se desenvolvem e deixam de ser, e uma vez que tal demonstração deve abarcar o incorpóreo que é a alma, resta perguntar o que nessa física ampliada é primordial. Os elementos corpóreos? Não, dirá ele no Timeu. Aqui, a afirmação é a de que a alma é primordial. Por quê? Para responder, é preciso esclarecer o movimento da physis e firmar, logicamente, que a existência da alma (e seu tipo de movimento) é não só anterior à existência dos corpos (e de seus movimentos), mas fundadora do conhecimento a eles pertinente, pois, dentre todos os tipos de movimento conhecidos, a alma tem aquele que, semelhante (mas não igual) à imobilidade, move-se em si mesmo e por si mesmo, sem que outra coisa necessite movê-la. Bem ao contrário, ela pode mover outras coisas a partir de seu próprio movimento, isto é, como causa (aitía), “aquilo pelo que”, seja por composição e divisão, acréscimo e decréscimo, deslocamento, geração e corrupção. Portanto, se a alma não tem uma causa alheia para o seu próprio movimento, é ela quem pode movimentar todas as coisas: ela é a causa primeira do movimento de todas as coisas e tem garantida sua anterioridade pela propriedade de seu mover-se. Aquilo que precisa de outro ser para mover-se, deve ser posterior àquele que é autônomo nesse sentido. Como expõe o ateniense a Clínias sobre a anterioridade da alma, exposição aceita sem qualquer problematização:
“…Qual é, pois, a definição deste ser que tem como nome ‘alma’? Podemos, por acaso, dar outra definição que aquela anteriormente dada, ‘o movimento capaz de mover-se a si mesmo’?” (896a).
Mas por que a aceitação imediata de Clínias quanto ao tipo de movimento da alma? Nenhum outro ser da physis tem esse modo de mover-se? Não, a não ser que se dê outro nome a esse mesmo ser, agora denominado alma. A alma, ou essa ousía que recebe tal nome, identifica-se, portanto, como a causa (aitía) – aquilo pelo que – da geração e corrupção, princípio do movimento dos seres corpóreos que existiram, existem e existirão. Ela é o “ser” mais antigo entre todos os seres da physis (895e). Será logicamente perfeito dizer, por isso, que as expressões com as quais os gregos comumente reconhecem a presença da alma – vontade, razão, caráter, opiniões, esperanças, recordações etc. – são anteriores às manifestações corpóreas. A inversão está feita.
É possível conciliar essa ousía das Leis com a ousía do Fédon? Não é difícil. A alma sendo movimento e princípio do movimento, não é uma “ideia”, não é permanência, não é um ser separado. Seu movimento autônomo transforma-se a partir de um impulso que lhe é próprio; mas como participa, ou se assemelha, ou tem parentesco com o uno, segundo o Fédon, sua transformação não destrói sua ousía. Esse ser imortal, diferenciado do corpóreo, é dirigente do movimento de todos os viventes enquanto primeiro motor da physis, vista restritamente como geração-corrupção. Resta entender melhor como a alma pode participar do uno sendo movimento que causa o múltiplo, problema que Platão enfrenta nos últimos diálogos, não só na perspectiva da noção de alma mas também na das ideias.
Na verdade, tanto no Fédon quanto nas Leis, ele fala em eidé da alma, isto é, em formas ou espécies da alma, demonstrando como uma existência, substancialmente a mesma, pode vir a apresentar poderes e expressões diversas sem deixar de ser em-si, tema dos estudos que tratam das dynámeis da alma, como faz a República, o próprio Timeu e o Sofista, que demonstram a unidade e o movimento das ideias. Platão indica, quanto à alma, que esta ousía una comporta o múltiplo; assemelha-se ao uno quando participa dele, ou seja, na atividade de pensar (phrónêsis), e assemelha-se ao múltiplo nas suas formas, ativadas quando participam dos corpóreos. A questão da semelhança e participação é o núcleo que ressalta dessa afirmação, mas não será nesse momento que trataremos dele.
Nas Leis, Platão aponta para, pelo menos, duas formas de alma, ao invés das três formas a que nos acostumamos pela leitura da República: a alma boa do céu, sábia, que acompanha a ordenação harmônica do todo e se assemelha ao noûs divino (noção desenvolvida no Timeu), e, contrária a essa, a alma má presente onde é possível emergir a desordem, isto é, nos corpos terrestres que assinalam a ausência do noûs, conceito que não é de fácil compreensão. Deixando, por ora, o aprofundamento dos valores atribuídos a essas duas formas de alma nas Leis, lembremos que no Fédon, a alma que se agarra por demais ao corpo perde-se no turbilhão dessa natureza. É a mesma alma, que, arrastada por um movimento desordenado, contrário ao movimento do noûs, torna-se “má” porque assemelhada, nesse caso, ao ser ao qual se uniu. Torna-se má pelo mesmo conceito que se torna boa: por participação. Será, então, o corpóreo mau? Ou está nele o mal? Há, realmente, duas almas, uma boa e outra má, como admitem alguns intérpretes? Ao longo de várias passagens de outros diálogos, principalmente no Timeu, emerge a questão da possível multiplicidade da alma e de sua relação com o corpóreo. Diante dessas colocações, muitos leram tais passagens como sendo a afirmação de duas ou mais almas, além de entenderem que um afastamento do corpóreo sinaliza as fortes raízes órficas do filósofo e prenuncia o neoplatonismo.
Nossas leituras têm indicado, entretanto, que a alma é uma ousía participante do uno e, enquanto misturada a seres de natureza diversa, modifica-se em função deles, apresentando formas e funções, uma vez que ela é existência com movimento e partícipe do uno e do múltiplo, como explicitaremos quando da abordagem do Timeu. Mas seu ser continua o mesmo, nem bom, nem mau, pois não é um “ser moral”, embora participante do Bem e do Belo. A alma remete-nos a uma forma de movimento transcendente àquele tido, até então, como o da physis. Nessa medida, o corpóreo sendo physis e a alma sendo physis e fundamento do corpóreo, este permite a potencialização da alma. Tal conclusão lembra-nos os textos arcaicos de Homero quando, por exemplo, a alma de Tirésias é “vivificada” pelo sangue sacrificial que Ulisses lhe dá para beber, no Hades. A psychê de Tirésias, como as outras psychaí, perambulam sem vida, como fantasmas. Somente algo do mundo terrestre – o sangue – pôde fazer com que o adivinho tivesse potencializado os seus poderes como se ainda fosse o duplo corpo-alma.
Há mais um problema a ser apontado: por que a alma, sendo diretora de todos os viventes e causa primeira de seu movimento, se deixa arrastar por aqueles que, aprioristicamente, domina? Essa resposta só pode ser dada aprofundando o estatuto do corpóreo, o que Platão faz no Timeu.