Lendo os diálogos platônicos [Sallis, 1996]

Este trabalho é dedicado à interpretação de certos diálogos platônicos. No nível mais imediato, é simplesmente uma tentativa de ler cuidadosamente alguns dos diálogos; ou seja, é simplesmente um exercício de leitura cuidadosa. Esse exercício deve ser contrastado com tratados do tipo que pretendem apresentar de forma direta algo chamado “a filosofia de Platão”. E esse exercício é, em primeiro lugar, o resultado da suspeita que é lançada sobre cada um desses tratados assim que se reflete, mesmo que momentaneamente, sobre o fato bem conhecido de que o próprio Platão não escreveu nenhum tratado expondo “sua filosofia”: propor-se a escrever um tratado sobre a filosofia de alguém que não escreveu nenhum tratado é, no mínimo, questionável — especialmente porque, com base no que ele escreveu, parece que ele evitou esse tipo de escrita por razões bastante importantes. Além disso, é igualmente questionável propor a apresentação, sob qualquer forma, de algo chamado “a filosofia de Platão”. Por quê? Porque é altamente questionável se existe algo como a filosofia de Platão — isto é, se a filosofia, tal como apresentada nos escritos platônicos, é tal que possa ser apropriadamente mencionada em tal frase — isto é, se a filosofia pode ser a filosofia de alguém ou se, ao contrário, tal frase já não trai um afastamento da demanda colocada sobre o pensamento filosófico, um afastamento na direção das opiniões, que de fato são as posses de homens particulares e cidades particulares.

Propor um tratado sobre “a filosofia de Platão” é questionável no sentido de que as perguntas que tal proposta provoca são tais que geram suspeitas em relação à proposta. Assim, propomos a prática de simplesmente ler os diálogos com atenção e cuidado. Mas ler com cuidado inclui também ter o cuidado de perguntar sobre a própria leitura e não apenas mergulhar precipitadamente no que deve ser lido, perdendo-nos, por assim dizer, nele como se fosse óbvio o que é exigido de uma leitura para que ela seja adequada aos diálogos. A questão reflexiva não deve ser suprimida, muito menos no início. Assim, até mesmo começar a ler com cuidado inclui estar preparado para aprender, na esteira desse questionamento, que a simples leitura dos diálogos não é nada simples.

Perguntar sobre a leitura em si, indagar sobre o que é exigido dela, requer, em primeiro lugar, que nos debrucemos sobre as dificuldades peculiares que acompanham essa leitura meramente em virtude de ser uma leitura de escritos platônicos. Uma dessas dificuldades resulta da forma peculiar assumida por quase todos os escritos platônicos. Esses escritos são diálogos e, o mais significativo, é que o autor não aparece como orador em nenhum dos diálogos. Há apenas duas referências a Platão nos diálogos: uma é pouco mais do que uma simples referência à sua presença, juntamente com outros companheiros de Sócrates, no julgamento do mestre (Apol. 34 a); a outra é uma simples referência à sua ausência (por motivo de doença) da cena da morte de Sócrates (Phaedo 59 b). Assim, Platão nunca fala em seu próprio nome — exceto, talvez, nas cartas. Mas, além de sua dubiedade em bases puramente filológicas, há o fato surpreendente de que na carta mais importante, onde esperaríamos ouvir Platão falando em seu próprio nome sobre os assuntos mais importantes, o que realmente ouvimos é que a filosofia não pode ser colocada em uma obra escrita e que o próprio Platão certamente não compôs nenhuma obra contendo seus pensamentos realmente sérios (Carta VII. 341 c). Não podemos deixar de refletir que essa carta é, em si, algo escrito; o resultado é que a autorreferência do que é dito na carta nega a ela o status de um simples documento direto.

Mas, independentemente de como se lida com as cartas, o fato é que, nos diálogos, Platão nunca diz nada. Isso significa que, quando prefaciamos uma declaração de um diálogo com as palavras “Platão diz”, geralmente estamos procedendo com base em certas suposições inquestionáveis a respeito do caráter dos diálogos; e quase sempre estamos dizendo mais do que é justificável dizer. Somos nós, e não Platão, que dizemos “Platão diz” e, portanto, cabe a nós dar testemunho do que dizemos. Esse testemunho não deve ser dado simplesmente observando e rotulando como sendo de Platão um determinado conjunto de opiniões apresentadas por alguém que tomamos simplesmente como porta-voz de Platão; nem, por outro lado, deve ser dado buscando algum conjunto não aparente de opiniões por trás daquelas que são apresentadas nos diálogos pela boca de Sócrates e dos outros principais oradores. Não se trata de buscar as opiniões de Platão de forma alguma, pois a filosofia é o que está fundamentalmente em questão nos diálogos, e a filosofia nunca é uma questão de opiniões de alguém; é, antes, aquela transcendência decisiva da opinião por meio da qual o homem é subordinado a uma medida mais elevada de tal forma que, assim, fica estabelecido que o homem não é a medida do que é. Assim, uma leitura dos diálogos pode ser ponderada, filosófica, somente se deixar de lado a opinião comum sobre a relação entre filosofia e opinião. Ler um diálogo com atenção e cuidado não significa descobrir as opiniões das quais o diálogo seria a expressão, mas sim tornar explícito o que o diálogo manifesta com relação aos assuntos que coloca em questão. Praticamos a leitura de um diálogo não registrando e rotulando — e muito menos “testando independentemente” — as opiniões nas quais a opinião comum acredita que o diálogo consiste, mas sim nos comportando no diálogo de modo a permitir que a manifestação na qual o diálogo consiste se concretize. Simplesmente ler os diálogos não é uma questão simples; pelo contrário, é uma tarefa que exige muito de nós.

(SALLIS, J. C. Being and logos: reading the Platonic dialogues. 3. ed ed. Bloomington: Indiana Univ. Press, 1996.)