Como dissemos, o texto começa com uma ladainha de paixões, uma enumeração dos afetos que são os dados imediatos da consciência, a experiência fundamental do eu encarnado. O ponto de partida é o eu empírico, disperso numa multiplicidade de estados. Ora, essa multiplicidade reduzir-se-á progressivamente: “πολλά γὰρ ημείς”, afirma Plotino primeiro, “somos muitos” (9, 7), depois “διττόν οὖν τὸ ημείς”, “o ‘nós’ é duplo” (10, 5). A multiplicidade, porém, não é tanto reduzida como negada: não se trata apenas de o hemeis submeter o seu corpo, mas de se separar dele. Este trabalho de separação é sobretudo um trabalho de consciência: trata-se de passar de uma consciência ingênua, imediata, que se determina como consciência exclusiva do corpo em mim (solicitude), para uma consciência mediada, refletida, que já não será apenas consciência do corpo-próprio, mas consciência de que o corpo é meu, depois consciência de que não sou apenas o meu corpo. A interrogação filosófica que se desenrola no Tratado 53 é o principal instrumento deste trabalho de consciência: ao interrogar-me sobre o que em mim pertence ao corpo, e depois sobre o que é um corpo em geral, tomo já consciência de que não sou o meu corpo mas o que nele se reflecte (§ 1-7). Descubro então que esta reflexão põe em jogo o que sou essencialmente: formas inteligíveis, pensamento puro (§ 7-13). Resta-me, então, tornar-me o que sou.
O trabalho que o tratado nos mostra, assim como o trabalho que é preciso fazer, é portanto o de uma consciência que se afasta do corpo para se tornar pensamento, que, de solicitude, se torna atenção. É, ao mesmo tempo, a negação de uma identidade imediata e enganadora e o esforço de reencontro com a identidade essencial — a passagem, portanto, do ego empírico, múltiplo, prisioneiro do corpo e dos seus afetos, ao ego liberado deste último e que se sabe puro pensamento1. Em suma, esta passagem do eu ao si é também a da consciência aristotélica, enquanto consciência exclusiva do corpo vivo ((Também aqui podemos reconhecer uma figura estoica da consciência, a mesma que é implementada pela teoria da oikeiosis, ou apropriação de si. A oikeiosis é, de fato, a relação imediata de cada animal com o seu próprio corpo, uma relação dada desde o nascimento sob a forma de auto-percepção e do impulso para se preservar (cf. Hierocles, 1, 34-9, 51-7, 2, 1-9). No entanto, esta consciência encarnada difere da consciência aristotélica na medida em que é imediata e não depende da percepção de um objeto externo. Hierocles opõe-se explicitamente aos seus opositores, que consideram que a função primordial da sensação é permitir-nos percepcionar a exterioridade (1, 44-46): para ele, a aisthesis é sobretudo reflexiva, equivalente à synaisthesis (5, 52-6, 24). A oikeiosis estoica aparece, assim, como uma reflexividade imediata e contínua, que, longe de acompanhar a percepção externa, é a condição para ela, mas através da qual o sujeito se percebe apenas como sujeito que sente, que age (e que, por isso, é comum ao homem e ao animal). É o mesmo que a consciência platónica, como consciência do pensamento puro.
Para Bergson, a questão fundadora de Plotino é precisamente a de saber “como é que o mesmo ser pode aparecer a si mesmo como uma multiplicidade indefinida de estados e ser, no entanto, uma única pessoa idêntica” ; é por ter sido o primeiro a formular esta questão que Plotino pode ser considerado o primeiro filósofo a ter pensado o problema da personalidade, e a tê-lo feito de tal forma que “a metafísica moderna pouco mais fez do que repeti-lo, e muitas vezes com menos vigor” (“The Problem of Personality”, Gifford Lectures, Edimburgo, 1914, trans. M. Robinet em A. e M. Robinet, Henri Bergson et l’Angleterre, “Les Études bergsoniennes”, vol. VII, PUF, 1966, p. VII, PUF, 1966, p. 95 ↩