Tanto basta para o espírito da natureza que penetra todo o universo e que se estende em seu espaço infinito. Mas o que dizer desse próprio espaço? Desse espaço que não podemos conceber senão como infinito — isto é, necessário — e que não podemos não imaginar ou, como diz More, “que não podemos desimaginar, o que é uma confirmação de sua necessidade”? Sendo imaterial, ele deve certamente ser considerado um espírito. No entanto, o espaço é um “espírito” de uma espécie muito especial e única, e More não tem certeza quanto à sua natureza exata, ainda que se incline, obviamente, para uma solução muito definida, ou seja, para a identificação do espaço com a própria extensão divina. Mas More não tem certeza disso. Assim, escreve:
Se não existisse nenhuma Matéria, mas a Imensidade da Essência Divina somente, ocupando tudo em virtude de sua ubiquidade, então a Reduplicação, se me é lícito falar assim, de sua substância indivisível, pela qual Ele se apresenta inteiramente em toda parte seria o Sujeito dessa Difusão e Mensurabilidade. . .
para as quais os cartesianos exigem a presença de matéria, afirmando que por si só a extensão material não pode ser medida, uma afirmativa que conduz necessariamente à afirmação da infinitude e da existência necessária da matéria. Mas não precisamos de matéria a fim de termos medidas, e More prossegue:
E acrescendo ainda que a observação perpétua dessa Amplitude e Mensurabilidade infinitas, que não podemos desimaginar [não imaginar], mas que será necessariamente objeto de nossa Imaginação, pode ser a noção mais obscura e mais rude, oferecida a nosso espírito, dessa Essência necessária e existente por si mesma que a Ideia de Deus nos representa com uma plenitude e distinção maiores. Pois está claro que é somente nosso Imaginação que está engajada na apropriação dessa Ideia do Espaço à Matéria corpórea, e que [nosso espírito] não concebe naturalmente nenhuma impenetrabilidade ou tangibilidade na Noção dessa Ideia de Espaço; por conseguinte, ela pode pertencer, tanto a um Espírito como a um Corpo. Donde resulta que, como já afirmei antes, sendo a Ideia de Deus tal como é, ela [a imaginação] projetará necessariamente essa noção mais grosseira de Espaço sobre aquele espírito infinito e eterno que é Deus.
Há ainda outra maneira de responder a essa Objeção, que é a seguinte: essa Imaginação do Espaço não é a imaginação de uma coisa real, mas apenas da vasta e imensa capacidade da potencialidade da Matéria, da qual não podemos libertar nossas Mentes, mas devemos necessariamente admitir que existe, efetivamente, uma tal possibilidade de a Matéria ser medida para o alto, para baixo e em todas as direções in infinitum, esteja essa Matéria corpórea realmente ali ou não, e que ainda que essa potencialidade de Matéria e Espaço seja mensurável em varas, milhas ou outra medida semelhante, ela não implica mais Essência ou Ser real [da matéria] do que a enumeração, por um homem, de uma certa quantidade de ordens ou Gêneros das Possibilidades das coisas, implica a realidade de sua Existência.
Mas se os cartesianos continuassem a nos pressionai e a insistir na impossibilidade de medir o nada do espaço vazio,
…. poderíamos lhes responder que a Distância não é uma propriedade real ou Física de uma coisa, mas somente [uma propriedade] nocional; pois ela pode advir para uma coisa, se bem que absolutamente nada seja feito à coisa à qual ela advém.
E se eles insistirem ainda e sustentarem que. . . a distância deve ser qualquer coisa de real. . . respondo brevemente que a Distância não é outra coisa senão a privação da união pelo contato e que, quanto maior é a distância, maior é também a privação; e que essa privação da união pelo contato é medida pelas partes, como outras privações são medidas por graus: e que as partes e os graus e as noções deste gênero não são absolutamente coisas reais, mas somente nosso modo de as conceber e que, por isso, podemos aplicá-las tanto a Não-entidades como a Entidades.
E se isso não os satisfizer, isso não destruirá nossa causa. Pois, após o banimento do mundo de toda a Matéria corpórea, sempre haverá Espaço e distância nas quais essa matéria era concebida, enquanto estava lá; mas esse Espaço distante não pode deixar de ser alguma coisa, muito embora alguma coisa não corpórea, pois não é nem impenetrável nem tangível: deve, portanto, necessariamente, ser uma substância incorpórea, necessariamente e eternamente existente por si mesma; ora, a Ideia mais clara de um Ser absolutamente perfeito nos informará mais plenamente e mais exatamente que este não é outra coisa senão o Deus que subsiste por Si próprio.
Já vimos que, em 1655, e também em 1662, Henry More hesitava entre várias soluções para o problema do espaço. Dez anos depois ele havia tomado a decisão, e Enchiridium metaphysicum (1672) não só afirma a existência real do espaço vazio infinito contra todos os adversários possíveis, como até a apresenta como o melhor e mais evidente exemplo de realidade não material — e portanto espiritual — e, assim, como o primeiro e mais importante, embora certamente não o único, objeto da metafísica.
Assim, Henry More nos diz que “o primeiro método para demonstrar [a existência] das coisas incorpóreas” deve basear-se na
demonstração da existência de uma certa extensão imóvel, distinta da matéria móvel, que é comumente chamada de espaço ou lugar interior. Que se trata de uma coisa real, e não imaginária, como afirmam muitas pessoas, provaremos mais tarde por vários argumentos.
Henry More parece ter esquecido completamente sua própria incerteza com relação à questão; em todo caso, não a menciona, e continua:
A primeira parte [da asserção] é tão óbvia que quase dispensa prova, visto estar confirmada pelas opiniões de quase todos os filósofos e mesmo de todos os homens em geral, mas particularmente daqueles que, como convém, acreditam que a matéria tenha sido criada num certo tempo. Pois devemos reconhecer ou que existe uma certa extensão fora da matéria, ou que Deus não poderia criar matéria finita; com efeito, não podemos conceber uma matéria finita senão se estiver cercada por alguma extensão infinita.
Como vemos, Descartes continua a ser o principal adversário de Henry More. Com efeito, como More descobriu entrementes, ao negar tanto o espaço vazio como a extensão espiritual Descartes praticamente excluiu os espíritos, as almas e até Deus de seu mundo; ele simplesmente não lhes deixa lugar nesse mundo. À pergunta “onde?”, a mais fundamental que pode ser levantada com relação a todos e quaisquer seres reais — almas, espíritos, Deus — e à qual Henry More acredita poder dar respostas definidas (aqui, alhures ou — para Deus — em toda parte), Descartes é obrigado por seus princípios a responder: em lugar nenhum nullibi. Assim, a despeito de ter inventado ou aperfeiçoado a grandiosa prova a priori da existência de Deus, prova essa que Henry More aceitou com entusiasmo e que viria a manter durante toda a vida, Descartes, através de sua doutrina, leva ao materialismo e, ao excluir Deus de seu mundo, ao ateísmo. A partir de agora, Descartes e os cartesianos serão continuamente criticados e levarão o apodo irônico de “nullibistas”.
Entretanto, os cartesianos não são os únicos adversários a serem combatidos. Há ainda a última falange de aristotélicos, que acreditam num mundo finito e negam a existência de espaço fora dele. Contra eles, Henry More ressuscita alguns velhos argumentos medievais usados para demonstrar que a cosmologia aristotélica era incompatível com a onipotência de Deus.
Não se pode duvidar, naturalmente, que se o mundo fosse finito e limitado por uma superfície esférica, sem espaço fora dela,
. . . seguir-se-ia, em segundo lugar, que nem mesmo a onipotência divina poderia fazer com que a mais exterior das superfícies deste mundo finito corpóreo possuísse montanhas ou vales, ou seja, proeminências e cavidades.
Em terceiro lugar, que seria absolutamente impossível para Deus criar outro mundo, nem mesmo duas pequenas esferas de bronze ao mesmo tempo, no lugar desses dois mundos, uma vez que os pólos dos eixos paralelos coincidiriam, devido à ausência de um espaço intermediário.
Ora, mesmo que Deus pudesse criar um mundo com essas pequenas esferas, estreitamente justapostas (sem levar em conta a dificuldade dos espaços que seria deixado vazio entre elas), Ele seria incapaz de pô-las em movimento. São conclusões que Henry More considera, com razão, irrefutáveis.
Entretanto, a insistência de Henry More na existência de espaço “fora” do mundo dirige-se, obviamente, não só contra os aristotélicos como também contra os cartesianos, aos quais ele deseja demonstrar a possibilidade da limitação do mundo material, e, ao mesmo tempo, a mensurabilidade, isto é, a existência de dimensões (que agora não são absolutamente consideradas como meras determinações “nacionais”) no espaço vazio. Parece que More, tendo sido na juventude adepto entusiasta da doutrina da infinitude do mundo (e dos mundos), passou a combatê-la cada vez mais, e gostaria de voltar à concepção “estoica” de um mundo finito no meio de um espaço infinito, ou pelo menos, de juntar-se aos semicartesianos e rejeitar a infinitização do mundo material, feita por Descartes. Ele chega até a citar, com aprovação, a distinção cartesiana entre a indefinição do mundo e a infinitude de Deus; mas é claro que, segundo a interpretação que faz dessa distinção, ela significa a finitude real do mundo, em oposição à infinitude do espaço. Isto, obviamente, porque agora ele entende muito melhor do que vinte anos antes a razão positiva da distinção de Descartes: infinitude implica necessidade, um mundo infinito seria um mundo necessário. . .
Mas não antecipemos as coisas. Passemos a uma outra seita de filósofos, que são ao mesmo tempo inimigos e aliados de More.
. . . mas também aqueles filósofos que não acreditavam na criação da matéria, mas não obstante admitiam [a existência de] Espaço, notadamente Leucipo, Demócrito, Demétrio, Metrodoro, Epicuro e também todos os estoicos. Algumas pessoas acrescentam Platão a esta lista. Quanto a Aristóteles, que definia lugar (Locus) como a superfície mais próxima do corpo ambiente, no tocante a essa questão ele foi abandonado por grande número de seus discípulos, que observaram com razão que nesse caso ele não estava em consonância consigo mesmo, pois com efeito atribuía ao lugar propriedades que não podiam pertencer senão ao espaço ocupado por qualquer corpo, isto é, Igualdade [uniformidade] e Imobilidade.
Além disso, vale mencionar que os filósofos que acreditavam ser o mundo finito (tais como Platão, Aristóteles e os Estoicos), admitiam Espaço fora do mundo, ou além dele, ao passo que aqueles que [acreditam em] mundos infinitos e na matéria ensinam que existe até dentro do mundo um vazio intermisturado; assim querem Demócrito e todos os Antigos, que abraçavam a teoria atômica; também parece confirmado pela voz da natureza que existe uma diatema ti korizmou, um certo intervalo ou espaço realmente distinto da matéria do inundo. Quanto aos posteriores, isso é suficientemente conhecido. Quanto aos Estoicos, Plutarco testemunha que, conquanto não admitissem nenhum vazio no interior do mundo, admitiam um, infinito, fora dele. E Platão diz em Fedro que acima do céu mais alto, onde ele coloca as almas mais puras, há um certo Lugar Supracelestial, não muito diferente da habitação dos bem-aventurados dos Teólogos.
Como a admissão de um espaço infinito parece assim ser, com pouquíssimas exceções, uma opinião de toda a humanidade, pode parecer desnecessário insistir nesse ponto e tornar esse espaço infinito objeto de demonstração. More explica, portanto, que
Eu certamente me envergonharia de me deter por tanto tempo numa questão tão simples se não fosse compelido a tal pelo grande nome de Descartes, que fascina os menos prudentes a tal ponto que eles preferem delirar e tresvariar com Descartes a ceder aos mais sólidos argumentos que se opuserem aos Princípios de filosofia. Entre as [teses] mais importantes que ele próprio menciona está aquela que eu tão afincadamente combati [alhures], a saber, que nem mesmo por vontade Divina seria possível haver no Universo uma distância que, na realidade, não fosse matéria ou corpo. Sempre considerei falsa essa opinião; agora, entretanto, impugno-a também como sacrílega. E para que eu não pareça tê-la invertido completamente, apresentarei e revelarei todos os subterfúgios através dos quais os cartesianos desejam se esquivar à força de minhas demonstrações, e responderei a eles.
Devo confessar que as respostas de Henry More aos “principais meios que os cartesianos utilizaram para fugir à força das demonstrações precedentes” são por vezes de valor muito dúbio, e na maioria dos casos “a refutação deles todos” não é melhor que alguns de seus argumentos positivos.