A hipertrofia dos termos idea e eidos, como marcas designativas de toda a ontologia platônica, é aliás, muito provavelmente, de origem aristotélica (cf. Metaph., A, 5, 987b7-8, b32), embora possa ser reconduzida a algumas formulações clássicas do próprio Platão: veja-se o Timeu 51d: «… esses [entes] inteiramente por si mesmos são as eide, que nós não atingimos pelos sentidos, mas apenas pelo intelecto»; ou o Fedro 249b: «Pois é necessário que o homem compreenda segundo o que é chamado eidos …»; assim também no Timeu 51c: «… ou será em vão que dizemos em todas as ocasiões que há um eidos inteligível de cada coisa?»; e ainda na passagem já citada da República X, 596a: «Com efeito, costumamos pôr um certo eidos, cada um único, para toda a multiplicidade a que atribuímos o mesmo nome». No mesmo sentido, ocorre igualmente na Carta VI a reivindicação explícita de uma sophia ton eidon (322de) e o emprego de idea / eidos ocorre por vezes em lugar central.
Todavia, como é geralmente notado, as preocupações de Platão com a terminologia são, em regra, marginais, o que explica uma razoável flutuação vocabular, agravado no caso dos dois termos em presença pelo facto de o uso platônico ser já importado do léxico corrente na sua época, ao qual ele dá um tratamento filosófico, mercê da integração no seu pensar.
Tal acarreta que a rigidez conceptual e concomitante centralidade com que estes vocábulos se perfilam na audição posterior da doutrina platônica não corresponda a uma semelhante fixidez e importância no contexto da própria terminologia original. Com efeito, desinseridos de um uso propriamente técnico, tais vocábulos nem sempre ocorrem onde em linguagem moderna os esperaríamos encontrar e, inversamente, surgem frequentemente em locais e com sentidos que antecipadamente não seria possível suspeitar; e isto significa, em concreto, que o seu uso não tem rigorosamente a mesma extensão do que qualquer das versões escolhidas para registar a sua acepção central.
Perante esta situação, torna-se extremamente difícil definir uma versão constante para o par idea / eidos, ainda que apenas para as ocorrências estritas e técnicas, como é o caso das referências acima apontadas, e principalmente se nos cingirmos às duas possibilidades habitualmente postas à disposição, a saber, a tradicional tradução por «ideia» e a mais recente opção por «forma».
Três factores, de algum modo já aludidos, concorrem para isso: 1 – o facto de idea e eidos intervirem em muitos contextos em que é manifestamente impossível vertê-los por qualquer daquelas duas hipóteses e por vezes mesmo precedendo ou sucedendo um uso claramente técnico; 2 – a circunstância de, para este sentido técnico de idea / eidos, Platão convocar também outras expressões, tais como genos, typos, schema, paradeigma, e também ousia, physis, arche e aitia; 3 – o facto de a reivindicação platônica expressa dos termos idea / eidos, a que assistimos nas referências citadas, ser também acompanhada pela reivindicação, igualmente expressa e enfática, de outras expressões, como sejam: auto kath auto («em si e por si mesmo»: cf. Ti. 51b) e o estin ou auto o estin («o que é», «o que propriamente é»: cf. Phd. 75cd, 92d; R. VII, 531c-532b, 533ab).
Por outro lado, de entre as restantes alternativas disponíveis, traduções como «espécie» e «carácter», de uma parte, e «aspecto», de outra, levantam os mesmos problemas de ideia e forma, i. e., não logram cobrir a totalidade das ocorrências, quer por acentuarem uma vertente tardia ou mesmo aristotelizante do platonismo, quer por constituírem opções demasiado vagas e fracas, pese embora a sua potencial generalidade.
A ambiguidade mantém-se, portanto, e mantém-se porque está no âmago mesmo da linguagem e do pensamento platônicos. Resta, pois, na impossibilidade de decidir, optar por aquela tradução que, perante determinados critérios, pareça mais apropriada.
Ora, a nosso ver, tal opção coloca-se entre manter deliberadamente a ambiguidade que encontramos em idea / eidos ou escolher uma expressão que, cobrindo eventualmente um maior número de casos, possua outrossim um sentido mais determinado: e tal é justamente a opção que se coloca entre ideia e forma.
Nenhuma das razões alegadas contra uma e outra destas hipóteses é definitiva. Dizer, como o faz Burnet, que ideia «sugere-nos inevitavelmente que as ‘formas’ (eide, ideai) são conceitos (noemata)», é o que se poderia compreender sob o efeito muito recente do avanço de uma interpretação conceptualista do último pensamento platônico (que para este Autor é justamente o único pensamento propriamente platônico), mas não tem em geral nenhum carácter decisivo, desde que à expressão ideia se garanta, como observa Chevalier, «o sentido realista que a Idade Média tinha tão profundamente discernido no platonismo».
É contudo igualmente inegável que esta tradução também levanta problemas – entre os quais se contam o facto de ela não compreender todos os usos de idea / eidos e a circunstância, relevada por Diès, de esta versão colidir com a habitual tradução do eidos aristotélico -, problemas que seriam outros tantos pontos a favor da tradução por forma. Todavia, dado que nada nos leva a homologar os sentidos platônico e aristotélico de eidos e que a tradução corrente para o eidos aristotélico é afinal quase tão pouco segura quanto a correspondente platônica, a objecção de Diès contra ideia e a favor de forma adquire, no fundo, pouco peso.
Para mais, aquela tradução tem a vantagem de ser a versão tradicional, o que de certa maneira compensa a sua comparativamente menor generalidade. Com efeito, o seu carácter tradicional permite circunscrever imediatamente – dir-se-ia mesmo: intuitivamente – aquilo de que se trata, sem tomar qualquer posição doutrinária. E, na verdade, na versão «ideia», não se regista propriamente uma tradução, mas unicamente uma transliteração: e essa é a sua virtude mesma.
Ora isto é algo que «forma» não pode alegar, uma vez que sugere inevitavelmente, para empregar agora a expressão de Burnet, que idea / eidos é uma estrutura meramente teórica ou mesmo uma quase-abstração, o que não só declara o seu potencial anacronismo, quanto, em todo o caso, o seu carácter excessivamente sobre-determinado.
Por todas estas razões, e pesando especialmente o que na ambiguidade própria às palavras e às noções de idea / eidos constitui uma abertura e uma expectativa que só o seu estudo mesmo caberá preencher, optamos por traduzi-las, em todos os contextos técnicos, por ideia.
Antes de terminar, entretanto, algumas referências breves são também devidas a dois termos que pervadem o vocabulário platônico da teoria das ideias e com que, por isso mesmo, recorrentemente toparemos: ousia e to hen.
No que toca ao primeiro caso, para lá de toda a discussão erudita em tomo do vocábulo, seguiremos a tradução habitual por «essência», excepto naquelas ocorrências em que ele assume flagrantemente uma conotação verbal, situação que só pode ser captada pela tradução «ser» (assim, por exemplo, no Prm. 156ab, e no Phlb. 26d).
No que toca ao segundo, e aproveitando a não negligenciável vantagem de a língua portuguesa conservar neste caso uma reminiscência do neutro grego e latino, representaremos, por princípio, hen por «uno», salvo naquelas circunstâncias em que o que está patentemente em causa é a unidade numérica (e. g., R. VII, 524d-525a, cit. infra, § 16), situação que verteremos pelo numeral.