Sócrates e sua missão

O HOMEM (cont.)
Excertos de Micheline Sauvage, Sócrates. Agir, 1959 (original em francês: Socrate ou la conscience de l’homme

Este homem comum é, entretanto, revestido de uma missão. Consagra a vida inteira a procurar e a provocar sem se cansar, obstinadamente, o diálogo com o Interlocutor oferecido pelos acasos do lugar e da hora; assim procede para obedecer a uma exigência divina tão imperiosa que o leva a preferir a morte ao silêncio. Homem que sente a consciência da própria missão e não apenas um professor. Existe algo de profundamente humilde na maneira como acossa o homem que se furta em face dele, da mesma forma que o Alcibíades platônico ou pseudo-platônico tenta escapar ao “taon” de Atenas, e não se presta à entrevista senão a contragosto. O sofista da moda agrada infalivelmente, pois se antecipa ao desejo que o público tem de sua palavra. Seduzem-se mutuamente. Mas Sócrates espicaça os Atenienses como a própria consciência deles. Por outro lado, nada tem a lhes i ensinar; quer apenas colocá-los em face de si próprios, num estado de desnudez completa. No momento, porém, se se olhar no espelho que Sócrates lhe estende, Alcibíades gostaria que ele estivesse morto. Acabará por se afastar dele, por fugir à tentação do bem.

A missão socrática causou dificuldade ao positivismo, por vezes um tanto sumário dos fins do século XIX, que a manipulou com a precaução que se usa ao tocar numa carga de explosivo. Molestou-o duplamente: pela origem oracular e pelo sentido ao mesmo tempo religioso e profano. Como falar, pois, de uma missão a respeito do homem com o qual se inicia em Atenas o “culto da razão”? Acaso será possível unir uma pregação ao tema racionalista segundo o qual a virtude é saber e, por conseguinte, pode ser ensinada? Mas isto é usar, para exprimir tais coisas, uma língua que não é nem grega nem socrática. De resto, vinte séculos mais tarde, a vocação cartesiana falará ainda a este respeito a língua de Sócrates, que não conhece oposição entre o religioso e o conceituai, e a própria carreira de Descartes terá também uma origem “demoníaca”: o sonho da noite de 10 de novembro de 1619, em que o Espírito de Verdade proferiu um oráculo. Semelhança digna de ser retida. Os autores a que aludimos omitem, aliás, de maneira curiosa, o tom, antes do tempo, evangélico do apelo socrático. Diógenes Laércio relata a propósito uma anedota que não precisa ser verídica para ser significativa. Ao encontrar o jovem Xenofontes, que ainda não conhecia, Sócrates ficou impressionado pela beleza de seu rosto, que transpirava honestidade. Barrando-lhe o caminho com o bastão (o famoso bastão que simbolizava o peregrino) perguntou-lhe onde se podiam comprar as coisas necessárias para a vida. “No mercado”, respondeu o moço sem compreender o duplo sentido da pergunta. — “E para tornar-se um homem probo, aonde preciso ir”? Xenofontes continuou no embaraço. “Segue-me, então, replicou Sócrates, e sabê-lo-ás. Segue-me…”