René Alleau
CIÊNCIA DO SÍMBOLO
O politeísmo grego apresenta um contraste singular com a aversão que o gênio helênico sentia por tudo o que era excessivo, monstruoso, e até pelas formas mais diversas de «desmesura». Um filho, Cronos, mutila selvaticamente o pai, Urano; este deus feroz traga os seus próprios filhos e depois vomita-os ainda vivos; Apolo, o mais belo dos deuses, a incarnação da serenidade, enforca Marsias numa árvore e esfola-o vivo; Deméter, a irmã de Zeus, devora um ombro de Pélops que fora assado e degolado pelo pai, Tântalo, com o mero objetivo de regalar os deuses. Poder-se-iam citar muitos outros horrores divinos deste gênero e atrocidades dignas dos povos mais bárbaros. No entanto, se um grego culto ensinasse aos seus filhos a história dos heróis e dos deuses, não podia deixar de lhes contar estas cenas terríveis e estas carnificinas absurdas.
É evidente que, embora a origem destas fábulas estivesse rodeada de mistério e elas fossem encaradas com temor e respeito, alguns filósofos gregos ousaram exprimir a sua dúvida e o seu desprezo em face delas. Xenófanes acusa Hesíodo e Homero de terem atribuído aos deuses tudo o que existe de vergonhoso entre os homens, o roubo, o adultério, a perfídia. Xenófanes afirma que «Deus é uno, o maior dentre os deuses e os homens, e não se assemelha aos homens nem na forma nem no pensamento»1. Este filósofo chama aos combates dos Titãs, dos centauros e dos gigantes, «invenções dos antepassados» (Isócrates, II, 38), e pede que a divindade seja louvada em santos relatos e em cânticos puros.
Segundo Diógenes Laércio (IX, 1), Heráclito declarava que Homero e Arquíloco mereciam ser expulsos das assembleias públicas e espancados. O mesmo autor conta que Pitágoras teria visto nos infernos a alma de Homero pendurada numa árvore e rodeada de serpentes, como castigo pelas mentiras que dissera a respeito dos Deuses.
No entanto, o poder político não permitia qualquer ataque à mitologia sagrada. Anaxágoras, que tentou dar uma interpretação moral às lendas homéricas e que, diz-se, explicou os nomes dos deuses alegoricamente, chegando a declarar que o Destino era uma palavra destituída de sentido, foi lançado na prisão de Atenas e só de lá saiu graças à proteção poderosa do seu discípulo e amigo Péricles. Protágoras, outro amigo de Péricles, foi expulso de Atenas e os seus livros queimados na praça pública, porque dissera que não podia saber se os deuses existiam ou não2.
Todos estes fatos, a que podemos acrescentar a condenação de Sócrates, embora ele nunca tenha atacado a tradição sagrada, nem sequer as fábulas populares, provam que a interpretação alegórica implicava graves riscos para o filósofo que ousava propô-la. No entanto, após a morte de Sócrates, os atenienses parecem ter admitido uma certa liberdade de pensamento, uma vez que Platão, embora declarasse que se podiam interpretar os mitos, baniu da sua república os poemas homéricos. Diógenes Laércio atribui a Epicuro as seguintes palavras:
Os deuses existem, sem dúvida, mas são diferentes daquilo que as pessoas vulgares pensam. Não é ímpio aquele que nega os deuses da multidão, mas é ímpio quem atribuir aos deuses os sentimentos do comum dos mortais (Dióg. Laérc. X, 123).
Sabe-se, aliás, que a poesia de Eurípides oscila entre estes dois extremos; ou acusa os deuses dos crimes e das injustiças que a fábula lhes atribui, ou nega a verdade dos antigos mitos porque atribuem aos deuses aquilo que é incompatível com a sua natureza.
Estas citações bastam, parece-me, para mostrar que as fábulas da mitologia grega se baseavam em tradições sagradas cujo sentido se tornara incerto, ou porque fora esquecido, ou porque apenas os hierofantes dos Mistérios o conheciam. Esta segunda hipótese parece bastante provável, devido ao caráter familiar e aos privilégios hereditários do sacerdócio antigo. O «depósito primordial» das ciências e das artes nunca foi revelado nem ensinado às claras em nenhuma das grandes civilizações antigas, ocidentais e orientais. Aristóteles parece fazer alusão a este «depósito sagrado» na seguinte passagem do livro XI da Metafísica:
«Uma tradição vinda dos antigos e da alta antiguidade e transmitida à posterioridade sob a forma de mitos, ensina-nos que os primeiros princípios do mundo são deuses e que o divino abrange a natureza inteira. O resto foi acrescentado fabulosamente, com o objetivo de persuadir o vulgo e de servir os reis e os interesses vulgares. Assim, disse-se que os deuses têm uma forma humana e que se assemelham a alguns dos outros animais e a outras coisas ligadas a estas.
«Se tomássemos em consideração apenas o primeiro ponto, ou seja, que os Antigos encaravam as primeiras essências como deuses, pensar-se-ia que esta tradição é verdadeiramente divina. E ao passo que, segundo todas as probabilidades, as artes e os sistemas de filosofia foram inventados várias vezes e se perderam outras tantas antes de serem descobertos de novo, estas crenças parecem ter chegado até nós como restos da sabedoria antiga.»
As tentativas de interpretação da mitologia grega, desde Sócrates até à nossa época, foram inúmeras. Dado que este problema exigiria, por si só, uma obra, ou antes uma enciclopédia, não o abordarei no presente estudo que se limita ao exame dos dados elementares da simbólica geral. Parece-me necessário, no entanto, recomendar ao leitor uma fonte documental, infelizmente muito difícil de encontrar nas livrarias, que é a obra monumental de Friedrich Creuzer, SYMBOLIK UND MYTHOLOGIE DER ALTEN VÖLKER (1819-1821), traduzida, ou melhor, refundida por Guigniaut sob o título: LES RELIGIONS DE L’ANTIQUITÉ CONSIDÉRÉES PRINCIPALEMENT SOUS LEURS FORMES SYMBOLIQUES, Paris, 10 volumes, 1825-1851. Embora o sistema de Creuzer, muito admirado por Hegel, não corresponda já às concepções contemporâneas da história das religiões, as considerações do autor apresentam ainda muito interesse e não merecem o esquecimento injusto a que foram votadas.
Luc Benoist
A degenerescência dos símbolos provocou a confusão que reina na mitologia grega, destituída hoje de todo valor metafísico. Transformou os mitos em simples ficções, o que os próprios gregos já haviam reconhecido há vinte séculos atrás e o que torna difícil a depuração dos ritos originais perdidos na exuberância dos episódios adventícios.
Com o correr do tempo, o caráter iniciático dessas narrativas desapareceu progressivamente por trás de seu aspecto poético e romanesco, às vezes prejudicial nesta inversão, pois a ambivalência universal dos símbolos sagrados também se encontra nos mitos. (Benoist)