Henry More: Deus e Espaço, Espírito e Matéria

Excertos do livro de Alexandre Koyré, “Do Mundo Fechado ao Universo Infinito”. Forense, 1986. Trad. Donaldson M. Garschagen.

Nem o rompimento da correspondência com Descartes nem a morte deste último puseram fim à preocupação de Henry More com a doutrina do grande filósofo francês. Poderíamos mesmo dizer que toda a evolução ulterior de More foi determinada, em grande parte, por sua atitude com relação a Descartes, uma atitude formada pela aceitação parcial do mecanismo cartesiano combinada com a rejeição do dualismo radical entre espírito e matéria, dualismo esse que, para Descartes, constituía o pano-de-fundo e a base metafísica deste mecanismo.

Não é das melhores a reputação de Henry More entre os historiadores da filosofia, o que não surpreende. Em certo sentido, ele pertence muito mais à história da tradição hermética, ou ocultista, que à história da filosofia propriamente dita; em certo sentido ele não pertence a seu tempo: é um contemporâneo espiritual de Marsilio Ficino, perdido no mundo desencantado da “nova filosofia” e travando uma batalha perdida contra ela. No entanto, apesar de sua posição parcialmente anacrônica, apesar de sua tendência invencível para o sincretismo, que o faz misturar Platão e Aristóteles, Demócrito e a Cabala, Hermes Trismegisto e a Stoa, foi Henry More quem deu à nova ciência — e à nova visão do mundo — alguns dos elementos mais importantes do quadro metafísico que lhe assegurou o desenvolvimento. Isto porque, a despeito de sua fantasia desenfreada, que lhe permitiu discorrer longamente sobre o Paraíso, bem como a vida e as diversas ocupações das almas e espíritos bem-aventurados em sua existência no Além, a despeito de sua pasmosa credulidade (só igualada pela de seu discípulo e amigo, membro da Royal Society, Joseph Glanvill, célebre autor da Scepsis scientifica), que o fazia acreditar em magia, em bruxas, em aparições e em fantasmas, Henry More conseguiu apreender o princípio fundamental da nova ontologia, a infinitização do espaço, que ele afirmou com energia inflexível e intrépida.

É possível, e mesmo provável, que ao tempo de suas cartas a Descartes (1648), Henry More ainda não tivesse dado conta do resultado a que levaria o desenvolvimento de suas ideias, tanto mais porque essas ideias não são de modo algum “claras” e “distintas”. Dez anos depois, em Antídoto contra o ateísmo e em A Imortalidade da alma, ele lhes daria forma muito mais precisa e definida. Mas foi apenas em Enchiridium metaphysicum outros dez anos depois, que elas adquiriam forma final.

Como vimos, a ofensiva dirigida por Henry More contra a identificação cartesiana do espaço ou extensão com a matéria segue duas linhas principais de ataque. Por um lado, essa identificação lhe parece restringir o valor e a importância ontológicas da extensão, reduzindo-a ao papel de atributo essencial apenas da matéria, e negando-a ao espírito, enquanto ela é atributo do ser como tal, a precondição necessária de toda existência real. Não existem, como afirma Descartes, dois tipos de substância, a extensa e a não extensa; existe apenas um tipo: toda substância, quer espiritual, quer material, é extensa.

Por outro lado, Descartes, segundo More, deixa de reconhecer os caracteres específicos da matéria e do espaço, o que o impede de ver tanto a distinção essencial entre esses conceitos como sua relação fundamental. A matéria é móvel no espaço, e, em razão de sua impenetrabilidade, ocupa espaço: o espaço não é móvel e não é afetado pela presença, ou pela ausência, de matéria nele. Assim, é impensável matéria sem espaço, ao passo que espaço sem matéria, não importa o que diga Descartes, é uma ideia não só simples como também necessária para nosso espírito.