More x Descartes: Indefinido

Passando à crítica que More faz de sua distinção entre “infinito” e “indefinido”, Descartes garante-lhe que isso não é

…. uma afetação de modéstia, mas uma precaução, em minha opinião necessária, no sentido de chamar certas coisas de indefinidas, ao invés de infinitas. Pois somente a Deus concebo positivamente como infinito; quanto às demais coisas, tais sejam, a extensão do mundo, o número de partes em que a matéria é divisível, e assim por diante, sejam infinitas simpliciter ou não, confesso ignorar. Só sei que não lhes vejo fim e, portanto, no que toca a mim, digo que são indefinidas. E embora nosso espírito não seja a medida das coisas ou da verdade, deve, certamente, ser a medida das coisas que afirmamos ou negamos. Com efeito, o que será mais absurdo ou mais desconsiderado que pretender passar julgamento sobre coisas que confessamos ser incapazes de perceber com nosso espírito?

Assim, surpreende-me que não só pareçais querer fazê-lo, como ao dizer que se a extensão é infinita apenas em relação a nós, a extensão, na realidade, será finita etc, mas também que imagineis além disso uma certa extensão divina, que iria além da extensão dos corpos, supondo assim que Deus tenha partes separadas umas das outras, que Ele seja divisível, o que representa, em suma, atribuir-Lhe toda a essência de um ser corpóreo.

Descartes, na verdade, tem toda razão ao sublinhar que More não o compreendeu direito: ele jamais admitira a existência possível ou imaginável de um espaço além do mundo da extensão, e mesmo que o mundo tivesse esses limites, que somos incapazes de encontrar, certamente não haveria nada além deles, ou melhor, não haveria nenhum além. Assim, com o intuito de dissipar inteiramente as dúvidas de More. ele declara:

Quando digo que a extensão da matéria é indefinida, creio que isso basta para impedir qualquer pessoa de imaginar algum lugar fora dela, para onde pudessem escapar as pequenas partículas de meus vórtices; isto porque onde quer que se conceba esse lugar, ele já conteria, em minha opinião, alguma matéria; pois quando digo que ela é indefinidamente extensa, estou dizendo que ela se estende para além de tudo que pode ser concebido pelo homem.

Mas julgo, entretanto, haver uma enorme diferença entre a amplitude dessa extensão corporal e a amplitude da, não direi extensão, pois propriamente não existe nenhuma extensão no caso, mas substância ou essência divina; e portanto chamarei a esta simplesmente infinita, e à outra indefinida.

Descartes tem decerto razão em querer manter a distinção entre a infinitude “intensiva” de Deus, que não só exclui todo limite, como ainda se opõe a toda multiplicidade, divisão e número, e a mera ausência de fim, ou indefinidade, do espaço, ou da série de números, que necessariamente os inclui e pressupõe. Essa distinção, ademais, é tradicional, e já a vimos ser sustentada não só por Nicolau de Cusa, como até por Bruno.

Henry More não nega essa distinção, pelo menos completamente. Em sua própria concepção, ela se manifesta na oposição entre a extensão material e a divina. No entanto, como ele declara em sua segunda carta a Descartes, ela não tem nada a ver com a afirmação de Descartes que o espaço poderia ter limites e com sua tentativa de formular um conceito intermediário entre o finito e o infinito. O mundo é finito ou infinito, tertium non datur. E se admitirmos, como temos de fazer forçosamente ,que Deus é infinito e está presente em toda parte, esse “em toda parte” só pode significar o espaço infinito. Nesse caso, continua More, retomando um argumento já empregado por Bruno, deve também haver matéria em toda parte, isto é, o mundo deve ser infinito.

Não podeis ignorar que ele é ou simpliciter infinito ou, na verdade, finito, embora não seja tão fácil determinar qual das duas possibilidades é a verdadeira. Contudo, o fato de vossos vórtices nunca se romperem parece representar sinal, claro de que o mundo é realmente infinito. Por minha parte, confesso livremente que conquanto eu possa subscrever resolutamente este axioma, O mundo é finito ou não finito, ou, o que significa a mesma coisa, infinito, não posso, entretanto, compreender plenamente a infinitude de qualquer coisa, seja o que for. Mas aqui acode-me à imaginação o que Julius Scaliger escreveu algures sobre a contração e a dilatação dos Anjos: ou seja, que eles não se podem estender in infinitum, ou se reduzirem a um ponto imperceptível ( oudenoteta ); contudo, se reconhecermos Deus como positivamente infinito, isto é, existente em toda parte, como corretamente fazeis, não vejo a possibilidade de a razão hesitar em admitir prontamente também que Ele em nenhuma parte é ocioso, e que com o mesmo direito, e com a mesma facilidade com que [Ele criou] esta matéria em que vivemos, ou que pode ser alcançada por nossos olhos e nosso espírito, Ele produzisse matéria em toda parte.

Tampouco é absurdo ou irrefletido dizer que, se a extensão é infinita somente quoad nos, ela será finita em verdade e em realidade:

Acrescento que essa consequência é muito clara e certa, porque o advérbio “somente” (tantum) exclui inteiramente toda infinidade real da coisa, que é dita ser infinita apenas em relação a nós, e portanto na realidade a extensão será finita; ademais meu espírito verdadeiramente percebe essas coisas que eu julgo, uma vez que me é perfeitamente claro que o mundo ou é finito ou é infinito, como eu disse acima.

Quanto à afirmação de Descartes segundo a qual a impossibilidade do vazio já está implícita no fato de que o “nada” não pode ter propriedades ou dimensões, e portanto não pode ser medido, More responde negando a própria premissa:

…. pois se Deus aniquilasse este universo, e depois de um certo tempo criasse outro do nada, esse intermundium ou essa ausência do mundo teria sua duração, que seria medida em um certo número de dias, anos ou séculos. Há assim uma duração de uma coisa que não existe, duração essa que é uma espécie de extensão. Consequentemente, a amplitude do nada, isto é, do vazio, pode ser medida por varas ou léguas, do mesmo modo que a duração daquilo que não existe pode ser medida em sua inexistência por horas, dias e meses.