Henry More: Um Sonho Visionário

Tradução Yara Azeredo Marino

Aconteceu então…, numa manhã de verão em que me levantara mais cedo que de costume e após muito caminhar por um determinado bosque… achar oportuno repousar sobre o solo, pois estava exausto, em parte pelo exercício corporal prolongado, mas principalmente devido à falta de sono e aos pensamentos ansiosos que muito me absorviam… Repousei imediatamente os membros esgotados, entre a erva e as flores, ao pé de um carvalho majestoso e florescente: na sombra, o ar doce e fresco da manhã banhava minhas têmporas escaldantes, e refrescava — dominando-me um prazer inexprimível — meu sangue e meu espírito, enquanto abelhas zuniam em torno de mim, sobre os arbustos cobertos de orvalho: a um ruído mais próximo se juntavam, da maneira mais melodiosa, os cantos longínquos dos pássaros alegres, retumbante de todas as partes do bosque. Essas delícias naturais que juntas conspiravam não deviam deixar — você de certo pode imaginar — de logo mergulhar meu corpo esgotado em um profundo sono. Mas minha alma estava tão desperta quanto podia e, parece, sonhou da maneira mais surpreendente que eu continuava a caminhar por aqueles bosques solitários, meus pensamentos se dirigindo mais livres do que nunca para as dificuldades habituais da Providência. Porém, assim que entrei naquele estado de grande ansiedade e de ardor espiritual — acompanhado (como sempre me ocorria quando desperto) de suspiros e exclamações, veementes e devotos, para Deus — surgiu de repente, a uma certa distância, um personagem muito grave e muito venerável, que caminhava lentamente em minha direção […] [More descreve os trajes desse personagem: uma longa veste de seda vermelha]. Durante todo o tempo que ele permaneceu afastado de mim, não tive medo e permaneci impassível: limitei-me, por respeito a um personagem tão venerável, a tirar meu chapéu e mantê-lo na mão. Mas quando ele se aproximou mais, o vivo clarão de seus olhos, que brilhavam de uma forma tão penetrante […], surpreendeu-me de tal forma que comecei a tremer violentamente. E, caso ele não tivesse colocado suas mãos sobre minha fronte e não me tivesse falado de uma maneira tranquilizadora, teria perdido a consciência. [Mas] foi isso que ele fez de uma forma paternal, dizendo-me: “Deus o abençoe, meu filho, tenha muita coragem e nada tema, pois sou o mensageiro enviado por Deus para o seu bem. Suas sérias ambições e aspirações para o verdadeiro conhecimento do seu Criador e dos caminhos de sua Providência… chegaram a Deus; estou encarregado de colocar em suas mãos as duas Chaves da Providência, a fim de que você se torne, por elas, apto para abrir o tesouro da Sabedoria que você procura tão ansiosa e piedosamente”. Nesse meio tempo, introduziu a mão direita na manga esquerda e de lá tirou duas chaves que brilhavam luminosas — uma de prata, outra de ouro —, ligadas por uma fita, cor do céu, bem largas colocou-as em minhas mãos… “Eis duas belas chaves, ó meu Pai, e muito agradáveis de se olhar: porém, onde está o Tesouro que elas devem abrir?” A essa [pergunta] ele respondeu inteiramente sorrindo: “O Tesouro, meu Filho, está nas próprias Chaves…” Examinando ambas atentamente, notei que possuíam uma série de anéis imbricados e que estavam inteiramente cobertas de letras, dispostas de um modo bastante confuso e desordenado. “Coloque as letras das chaves em uma ordem lógica”, disse então, “e depois tire a haste [das chaves], e o Tesouro surgirá… Você deve antes conhecer a divisa, meu filho: claude fenestras, ut luceat domus.”1

Tendo obtido a divisa, e disposto em linha reta as letras que a formavam, segurei a parte inferior da chave com a mão esquerda, retirando a haste com a direita: havia apenas um tubo de prata, no qual se encontrava um rolo de papel fino (foi o que imaginei), mas mais sólido do que qualquer pergaminho, e tão branco quanto a neve. Ao retirar o rolo, apressei-me em desenrolá-lo: ele tinha a forma de um quadrado perfeito, as extremidades exatamente iguais em todos os lados, traçadas com linhas azul-celeste perfeitas e encantadoras. No meio estava estampado o sol, cintilante como ouro. Ao redor do sol havia seis círculos, traçados com linhas do mesmo azul. Dois desses círculos se encontravam próximos ao sol; os outros quatro estavam afastados deste último e uns dos outros, ainda que a distâncias desiguais. Em cada um desses círculos havia um pequeno motivo com a forma de um globo, mas de duas cores distintas: o lado de frente para o sol resplandecia como a prata, o outro era de um negro sombrio e sem cor. Ao redor desses pequenos globos, no terceiro e quinto desses círculos estavam traçados círculos menores também azuis. E em cada um desses círculos havia também uma pequena mancha globular de dimensões inferiores àquelas do meio. Havia igualmente alguma coisa sobre o globo do sexto círculo, mas não consigo me lembrar muito bem. Além dos círculos havia uma série incalculável de formas semelhantes às estrelas de ouro, da mesma cor do sol, mas não tão brilhantes: espalhadas ao acaso, algumas se encontravam a uma distância notável da margem, outras próximas, outras divididas em duas partes pela linha azul da margem, dando talvez a entender que devíamos compreender que existe ainda um número bem maior daquelas estrelas douradas, até uma distância indefinida… Soube qual era o significado na margem superior: “O verdadeiro sistema do mundo…” Entusiasmado com a abertura do primeiro Tesouro, desejava ansiosamente tentar o outro. Ciente de que toda tentativa seria vã sem o conhecimento da divisa (ou chave da chave) supliquei ao divino sábio que esta me fosse comunicada: “Eu o farei de muito boa vontade, meu Filho”, disse ele, “é Amor dei Lux Anima’…2 ele [o rolo] era mais resplandecente, ricamente decorado com flores de ouro, de vermelhão e azul. Observei que 12 frases preenchiam a superfície do papel, escritas em letras douradas.

1. A medida da Providência é a Bondade divina, que não tem outros limites a não ser ela própria, que é infinita.

2. O fio do tempo e a expansão do universo: a mesma mão tirou um e desenrolou o outro.

3. As trevas e o abismo existiam antes da luz, e os sóis ou estrelas antes de toda obscuridade ou sombra.

[Esta passagem opõe o que está antes da luz ao que é o contrário da luz.]

4. Todos os espíritos intelectuais que foram, são ou serão jamais nasceram com a luz, e se regozijaram juntos diante de Deus, na manhã da Criação.

5. Nessas miríades infinitas de agentes livres, donos de seus próprios destinos, teria sido maravilhoso se elas tivessem seguido o mesmo caminho; e, dessa maneira, o pecado com o tempo apertou a mão da opacidade.

6. Ora a luz vence as trevas, ora as regiões de bem-aventurança [vencem] as do pecado e da miséria.

[à leitura do sexto aforismo, More acordou em sobressalto.]
  1. Primeira divisa: “Feche as janelas para que brilhe a casa”: em outras palavras, feche seu conhecimento pelos sentidos a fim de que se abra o conhecimento interior, o olho interno. 

  2. Segunda divisa: “Amor de Deus, luz da alma”, uma profissão de fé iluminista, como a primeira divisa. A filosofia torna-se teosofia.