A morte de Sócrates

Todos conhecem, do Criton, a famosa “prosopopeia das leis”. Trecho escolhido para antologia, que basta para classificar como exemplar a morte de Sócrates. O filósofo inocente prefere a cicuta injusta à uma fuga que redundaria em desdouro das leis de sua cidade. Mais consciente do próprio valor, Aristóteles, conforme se conta, ao se ver ameaçado de processo semelhante, eclipsou-se, declarando: “Não deixarei Atenas pecar duas vezes contra a filosofia”. Não lhe sorria a perspectiva de ser um segundo Sócrates.

Mas, enfim, a prosopopeia das leis nada explica se ela mesma não é explicada. O respeito de Sócrates é sincero, mas de maneira alguma fetichista. Uma prova é não se ter jamais abstido de criticar, por exemplo, as instituições políticas de Atenas, quando estas lhe pareciam contradizer a razão. Convém, sobretudo, notar que o homem de respeito e o ironista formam em Sócrates um todo indissolúvel. A partir disso, deve-se procurar a medida de sua obediência, não na abdicação do indivíduo perante a coletividade, mas no livre consentimento da pessoa. Aos juízes declara sem cerimônia: Não me ordenem que renuncie à minha tarefa porque não obedecerei jamais. “Obedecerei ao deus antes que a vós”. É claro. Sócrates, segregado como todo revolucionário autêntico, poderia transpor assim a palavra de um personagem do Diálogo das Carmelitas: não é o grupo que me sustenta, mas sou eu que sustento o grupo. Por esta razão Han Ryner, que consagrou tantos capítulos ao problema de Sócrates, suspeita que os discípulos tenham fabricado um Sócrates conformista por espírito de prudência, transformando, assim, em inimigo dos sofistas e amigo das leis o amigo dos sofistas e inimigo das leis. Arrebatado por sua tese, ele não vê sorrir o revolucionário até na apologética do muito conformista Xenofontes, e não consegue mais explicar que este revolucionário tenha antes preferido morrer a ir viver alhures.

O sentido apenas oculto por metade da prosopopeia das leis deve ser procurado sem dúvida na Apologia platônica. O respeito de Sócrates não é, por certo, aquele que leva a dobrar os joelhos diante dos imperativos de uma sociedade divinizada. Nem corresponde, tampouco, ao sentido do contrato social sugerido pelo texto do Criton. Antes, pelo contrário, se recusa a fuga fácil e deixa a cidade cometer um crime, é porque quer permanecer fiel até o fim ao mandamento délfico. Não fala debalde, na Apologia, em deserção. Sua função é aqui e não noutra parte. Por isso é que, antes mesmo de se recusar a fuga clandestina, já se recusara ao exílio legal, is Separado de Atenas pelo intervalo de uma consciência, ele é, entretanto, de Atenas, ele é a própria Atenas. Tal solidariedade seria, porém, rompida por um Sócrates que procurasse safar-se e o próprio Sócrates se dissiparia como um fantasma. Não restaria, então, nada mais que um indivíduo qualquer, um certo Sócrates, filho de Sofronisco…

O Estagirita podia abandonar Atenas e permanecer Aristóteles. Mas Sócrates não. Sócrates é sua morte.