Na Grécia, assim poderia ter sucedido: uma religião, cuja essência própria implicava – em conformidade, evidentemente, com o que a história nos expõe – a qual, como mitologia emergente de uma religião que por natureza sua, havia de ceder o lugar a uma filosofia, já era, ela mesma, filosofia. Não, porém, ou não ainda, a filosofia que a religião viria a ser no ponto que se reputa como o mais alto da sua história. A filosofia que, a seu modo, a mitologia grega já é, não se exprime senão através dos mitos gregos: e estes são relatos de acontecimentos que só podiam ocorrer em um mundo onde ainda não existia nem Homem, nem Deus, nem Natureza. Que mundo seria esse – esse que ainda pode aparecer-nos em felizes momentos de distração? E por que laços se ligará esse mundo com o mundo em que existem a Natureza, Deus e o Homem – aquele em que temos de viver com atenção concentrada numa ação tirânica sobre o natural e por usurpação de uma divindade que não lhe é estranha?
Observemos, em primeiro lugar, que, propondo a existência de um mundo cuja estrutura é solidária com a forma do acontecer, de um mundo projetado ou «objetivado» pelas ações que nele desempenham os homens, também estes projetados ou «objetivados» pela Realidade, num só arremesso – não pressupomos nem mais nem menos, acerca da natureza de um mundo mítico, do que os teorizadores da ciência física, os quais, com toda a seriedade nos dizem, ou nos dão a entender (quando à cautela se mistura a audácia) que, de certo modo, é o «nosso» universo numa construção da ciência. Por conseguinte, mutatis mutandis lícito nos seria afirmar que o mundo da mitologia é um mundo construído pelos genéricos acontecimentos que nele ocorrem. Esta comparação entre o universo físico e o mundo mítico só comparece aqui no propósito de mais vigorosamente sugerir a nossa ideia. Com efeito, ao escutarmos certos ensinamentos da ciência moderna, dir-se-ia que não existe, por um lado, um universo físico e, por outro lado, uma física do universo. O que nos permite propor – explorando a analogia – que também não haja, por um lado, o mito que acontece no mundo e, por outro lado, um mundo em que o mito acontece. Existiria, sim, tanto num, quanto noutro caso, um mundo definido, determinado ou «objectivado» pela própria estrutura do acontecer.
Fixamos, neste ponto, uma primeira conclusão: o mundo mitológico não é só o mundo em que o mito acontece; é também o próprio acontecimento mítico. Noutros termos: o mundo mitológico é a cena em que se desenrola certo gênero de ação, mas é preciso que estes termos impliquem a ideia de que esse drama sui generis cria espaço, tempo, substancialidade e causalidade, nos quais e pelos quais, ele mesmo se desenrola. Aliás, não é isto o que a antropologia nos ensina, quando nos fala de um tempo e de um espaço «qualificados», que não são nem o tempo da nossa história nem o espaço da nossa física, espaço e tempo em que o homem «primitivo» situa o acontecer de seus mitos? Ou de uma substância e de uma causalidade que não poucas vezes se tornaram irreconhecíveis a quem não possa ou não queira subverter o valor e a tradicional definição dessas categorias de inteligibilidade? Simplesmente, o que a reflexão sobre os dados etnológicos não chega a dizer-nos é que o acontecimento mítico funda e fundamenta, instaura e inaugura essas formas da apreensão sensível e essas categorias que já não podem ser as da nossa compreensão intelectual, a priori que elas sejam ou não, mas quaisquer que sejam, sempre presidem àqueles experimentos – reptos ou desafios que, moderadamente, se denominam «perguntas» – dirigidas à Realidade, porque ela mesma de nós as solicita. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)