O logos substitui o mythos

De manifesto propósito, até agora, raramente citamos o testemunho de Hesíodo. A reserva, lançamo-la a crédito das modernas tendências para assinalar a obra do poeta beócio como o início do caminho que termina na codificação lógica do fascinante mistério do horizonte. É claro que, na bibliografia pertinente, isto se diz de outro modo: o projeto histórico da filosofia grega arranca da Teogonia de Hesíodo. Advirta-se o leitor de que remetemos para bem longe de nossas cogitações comprovar refutar a tese formulada nestes termos, pois, em qualquer dos casos, cedo ou tarde se abriria a nossos pés a armadilha positivista, no fundo da qual se encontra sempre, bem ou mal disfarçada, a ideia de que o logos substitui o mythos, em certo estágio da evolução do pensamento humano, com a implicação de que um encobre o erro e o outro descobre a verdade. Evitando cautelosamente a cilada, digamos que o mais certo é talvez o reverso do que escreveu o poeta: «a Verdade / Nem veio nem se foi: o Erro mudou» (Fernando Pessoa). A verdade muda, isto é, o real, qualquer que ele seja, desoculta-se (tanto quanto se oculta), não em mais ou menos verídicas expressões, que, vistas ao invés, seriam erros mais ou menos próximos da verdade, mas sim, por respostas diversas a diversas solicitações. Pertence a certo gênero de solicitação do real, opor imaginação mítica a pensamento lógico-discursivo, como definitivamente inconciliáveis, no plano em que se busca a verdade, e depois, anular a oposição, excluindo o extremo representado pela imaginação mítica. Congênere seria também a solicitação, em obediência à qual se pretendesse excluir o extremo oposto. Qualquer oposição de extremos contraditórios é redutível a uma complementaridade, o que, para nós, significa que o «mesmo» se oculta por detrás da contradição. Mais duas advertências. A primeira é que, do real absoluto, ou como quer que se designe o objecto (nunca objectivo) que toda metafísica procura, saiba ou não, que jamais o achará, sem que por isso deixe de procurá-lo, não há, nem pode haver, expressão direta; daí, que se fale de «cifras» e «codificações». A segunda, incide no uso das palavras «solicitação do real», que envolvem uma ambiguidade: «do real» é tão subjectivo, quando objectivo, e, por conseguinte, a «solicitação» vem do real que é o mundo para o real que nós somos, e vai do real que nós somos para o real que é o mundo; é uma solicitação recíproca e simultânea, dentro do mesmo «regime de fascinação». (Excertos de “Horizonte e Complementaridade”)