Nessa óptica, a regulamentação da continuidade já é significação de ruptura. Mas onde e como se opera essa solução? A partir daí introduz-se o debate sobre a origem do discurso filosófico. Onde está o corte entre o mito e o pensamento racional? Estará ele presente nesses pensadores físicos que, como Tales, tomam por objeto da interrogação decisiva os fenômenos naturais? Ou será antes preciso esperar por Heráclito ou Parmênides, que são os primeiros a colocar à questão do ser e, em consequência, inauguram o problema metafísico? Será conveniente situar mais seriamente o começo da filosofia no escrito platônico, preservado em sua maior parte e que coloca pela primeira vez de maneira explícita o problema da razão: o do discurso integralmente legitimado? E os atomistas? de onde vêm?
Em suma, a ideia de uma gênese tranquila que conduziria do imaginário ao real, da magia à prática, da particularidade (social) ao universal (humano), do desejo ao discurso, é comprometida desde que se coloca a questão de sua articulação. Como a análise de J. Bernhardt estabelecerá, a denominação corrente de “pré-socráticos” atribuída aos autores sôfregos de teoria e cronologicamente anteriores ou contemporâneos de Sócrates é característica de uma concepção ingenuamente progressista e simplificadora do dever do pensamento. A questão em todo caso é mais complicada: e é certo que não se pode resolvê-la tomando por referência uma progressão linear que conduziria da pré-razão à razão realizada, da filosofia em potência à filosofia em ato; situemo-nos precisamente no seio desta filosofia supostamente “realizada”: a de Platão. Um estilo novo de discurso nela se impõe; define-se uma ordem que será logo designada como lógica; determina-se nele uma política original. A novidade é evidente: não é mais a força aparente dos hábitos ou o poder pseudo-real dos mantenedores da ordem que se impõe, mas a ordem da palavra controlada. Entretanto, no domínio dessa novidade, já que ela é tomada no entrelaçamento histórico da constituição da cidade, o filósofo permanece um sábio, o equivalente do xamã — do feiticeiro — que está em conivência com dinamismos misteriosos…
Tudo se passa como se a filosofia, ao mesmo tempo que consegue delimitar cada vez melhor a originalidade de seu campo discursivo, reiterasse, integrando-as, atitudes muito antigas. Por isso convém não apenas recusar a imagem de uma evolução linear, mas também nuançar os esquemas de continuidade ou de descontinuidade. Certamente, a análise dos textos permite revelar “começos” ou “rupturas”. Mas o que começa mantém em parte aquilo contra o que começa: e o que rompe integra também elementos daquilo de que se empenha em se distinguir. Com respeito a isso, o caso do platonismo é ainda exemplar: a filosofia platônica recusa a educação tradicional, fundada essencialmente sobre o ensino dos poetas, e a religiosidade confusa que este veicula; porque requer um adestramento científico e faz apelo aos matemáticos e à lógica, porque tem em mira organizar-se, não em torno de representações ambíguas, mas de noções precisas, ela assinala um corte e define uma perspectiva “moderna”. Mas ao mesmo tempo se opõe a um outro “modernismo”, o dos sofistas, que também recusavam a tradição: em nome de outros princípios, talvez mais radicais. Platão não quer saber do utilitarismo, do convencionalismo, do relativismo fundamentais dos sofistas. Não é o homem em sociedade que o interessa, mas o divino no homem. No seu modo de ver, a democracia, em suas diversas formas, é decadência. Consequentemente, é como “reacionário” que fala. Diretamente, quando rejeita a lógica “liberal” dos sofistas utilizada, por exemplo, pelo discurso historiador de Tucídides; indiretamente, quando faz valer no seio de sua própria demonstração estes procedimentos lendários que são a alegoria e o mito e quando investe o filósofo de poderes que vão além dos poderes do comum dos mortais.
Em resumo, a filosofia é grega, ela é filha da Cidade, da Cidade democrática. Isso afirmado, permanece o fato que a língua grega não é uma essência imutável e que, quando se reflete sobre seu estatuto, as mudanças contam tanto quanto as permanências. Permanece o fato que a Cidade, que sucede revolucionariamente a uma “Idade Média feudal”, tem suas raízes num passado anterior que os reis pré-homéricos assinalam e cujo vestígio está presente nos textos platônicos, entre outros. Permanece o fato que a democracia ateniense — ponto de referência de Platão e de seus adversários, os sofistas — é um problema, não uma essência.
Isto quer dizer que não é fácil se sair bem de um empreendimento como a história da filosofia. Há incontestavelmente, pelo menos de Platão a Hegel, um domínio específico que se pode legitimamente qualificar de filosófico; que tem seu domínio, seu poder integrador, sua ordem própria. Mas, constantemente e desde o início, esse estilo que tem a pretensão de ser a jurisdição suprema deve confessar sua impureza. O horizonte de que pretende se desprender e que almeja ultrapassar e julgar determina-o inteiramente. Assim, o pensamento, por volta do século V antes de nossa era, passa do reinado do mito ao império da lógica filosófica: mas essa passagem significa precisamente que já havia, de um lado, uma lógica do mito e que, de outro lado, na realidade filosófica ainda está incluído o poder do lendário.
Do mito ao pensamento racional? Certamente. Mas aquele não é pura imaginação desordenada e este tende a se impor como um novo mito.