Parm. 127d-137c — Zenão e Sócrates

Terminada essa parte, Sócrates lhe pediu que relesse a primeira hipótese do primeiro argumento, depois do que se manifestou: Que queres dizer com isto, Zenão? Se os seres são múltiplos, por força terão de mostrar, a um só tempo, semelhanças e dissemelhanças, o que não é possível. Nem o semelhante pode ser dissemelhante, nem o dissemelhante semelhante. Declaraste isso mesmo, ou fui eu que não compreendi direito?

Isso mesmo, respondeu Zenão.

Então, se o dissemelhante não pode ser semelhante, nem o semelhante dissemelhante, no mesmo passo não será possível existir o múltiplo, porque, se existisse, não poderia eximir-se desses atributos impossíveis. Mas, o fim precípuo de tua argumentação não visa a combater a crença geral de que o múltiplo existe? Não estás convencido de que cada um dos teus argumentos demonstra isso mesmo, e que, no teu modo de pensar, os argumentos por ti apresentados são outras tantas provas de que o múltiplo não existe? Foi isso o que disseste, ou não entendi bem?

De forma alguma, teria falado Zenão; apanhaste admiravelmente bem a intenção geral do escrito.

Compreendo, Parmênides, continuou Sócrates; nosso Zenão deseja tornar-se-te mais íntimo por vários meios, mas principalmente com a ajuda de seus escritos. No final de contas, o que ele afirma é mais ou menos o que tu próprio escreveste; porém introduzindo algumas modificações, quer dar-nos a impressão de que diz coisa diferente. Declaras em teus Poemas que Todo é um, em reforço do que aduzes argumentos belos e convincentes. De seu lado, ele nega a existência do múltiplo, para o que apresenta provas de todo o ponto fortes e superabundantes. Desse modo, quando um diz que o Uno existe e outro nega a existência do múltiplo, falando cada um como se nada tivesse de comum com o outro, quando em verdade ambos afirmam a mesmíssima coisa, o que enuncias parece voar muito por cima de nossas cabeças.

É isso mesmo, Sócrates, observou Zenão; porém não apanhaste à justa a verdade do meu livro, dado que, à maneira dos cães de Esparta, saibas descobrir o rastro e acompanhar o pensamento. Porém uma particularidade te escapou: é que este escrito absolutamente não se eleva a tais remígios, como te apraz atribuir à sua feitura, no sentido de ocultar aos homens suas sublimes pretensões. O que disseste a esse respeito é simples acessório. O fim precípuo do trabalho é defender, a seu modo, a tese de Parmênides contra os que pretendem ridicularizá-lo, como se da admissão do Uno decorressem as mais escarninhas consequências, que invalidam de raiz sua doutrina. É um escrito de combate contra os que defendem a existência do múltiplo, em que os golpes são devolvidos com usura e com a intenção manifesta de mostrar como decorrem consequências muito mais absurdas da hipótese do múltiplo, por eles defendida, do que da do Uno, para quantos a examinarem a preceito. O trabalho é produto do pendor para as disputas mito próprio do jovens; porém alguém mo roubou depois de pronto, antes de se me ter facultado o ensejo de considerar a sós comigo, se conviria ou não entregá-lo ao público. Foi o que não percebeste, Sócrates, por admitires que ele houvesse sido composto sem aquele espírito combativo, mas com a ambição da idade madura. No mais, conforme disse, tua apreciação não foi de todo má.

Bem; aceito a explicação, teria falado Sócrates, e admito que seja conforme declaraste. Porém dize-me o seguinte: não reconheces a existência em si mesma da ideia de semelhança, e a de uma outra, oposta a essa, de dissemelhança em si mesma, e que delas duas eu e tu participamos e todas as coisas a que damos a denominação de múltiplo? E que as coisas que participam da semelhança se tornam semelhantes, a esse respeito e na medida em que participam da dissemelhança, e uma e outra coisa as que participam das duas a um só tempo? Se todas as coisas participam dessas ideias, contrárias, e, pelo próprio fato dessa participação, ficam, no mesmo passo, semelhantes e dissemelhantes a elas mesmas: que há de surpreendente em tudo isso? Se alguém mostrasse semelhantes no ato de se tornarem dissemelhantes, ou o inverso: dissemelhantes passando a ser semelhantes, isso sim, eu tomaria como verdadeira maravilha! Porém dizer que as coisas que participam de uma e de outra apresentam ambos os caracteres, é o que não se me afigura, Zenão, contraditório; é como se alguém afirmasse que tudo é um pela participação da unidade e que esse mesmo todo é múltiplo por sua participação da pluralidade. Mas se me provassem que é múltipla a simples unidade, ou que o múltiplo é um: eis o que me surpreenderia sobremodo. E tudo o mais pelo mesmo estilo. Se me demonstrassem, outrossim, que os gêneros e as espécies apresentam em sua esfera própria esses caracteres opostos, haveria de que maravilhar-me. Mas, que há de extraordinário dizer alguém que eu sou ao mesmo tempo uno e múltiplo? Seria o caso, para provar minha pluralidade, de mostrar a diferença entre o lado direito e o esquerdo, a frente e o dorso, a porção superior e a inferior, pois de muitas maneiras, quero crer, participo da pluralidade. Ou então, para insistir na unidade, dizer que eu sou um dos sete indivíduos aqui presentes, visto participar da unidade. De onde se colhe que as duas assertivas são igualmente verdadeiras. A este modo, sempre que um se abalança a demonstrar a simultaneidade do Uno e do múltiplo em coisas com seixos, pedaços de madeira e outras mais da mesma natureza, dizemos que essa pessoa provou simplesmente a existência de unidades e da multiplicidade, não que o Uno seja múltiplo, e o inverso: o múltiplo, Uno. Com isso, não terá dito nada extraordinário, senão algo em que todos convirão. Porém se alguém, como afirmei neste momento, começar por distinguir umas das outras as ideias de si mesmas: semelhança e dissemelhança, pluralidade e unidade, repouso e movimento, e tudo o mais do mesmo gênero , e demonstrar, em seguida, que todas elas são capazes de unir-se umas com as outras o de separar-se: isto sim, Zenão, continuou a falar, é que me deixaria contentíssimo. A meu parecer, argumentaste neste domínio com bastante firmeza e decisão. Porém num ponto, torno a dizer, e que muito mais me alegrara, seria poder um demonstrar que tais perplexidades se entrelaçam de mil formas e o mesmo fizésseis com o que e apreendido apenas pelo entendimento, tal como exemplificastes com as outras que nos caem sob a vista.