Parm. 132a-135c — Dificuldades da transcedência das Ideias

Pois sabe, teria falado, que, por assim dizer, não apanhaste todo o alcance da dificuldades, com admitires uma ideia única e à parte para toda classe de seres.

Que dificuldades?

Há muitas, disse: a maior é a seguinte: alguém poderia sustentar que, definindo-as como fizemos, as ideias não podem ser conhecidas, não sendo possível provar o engano de quem afirmasse o contrário, a menos que esse contraditor tivesse grande experiência e fosse excelentemente dotado pela natureza e se dispusesse a desenvolver uma longa e laboriosa demonstração. A não ser assim, não há meio de demover de sua convicção quem sustenta que as ideias não podem ser conhecidas.

E a razão disso, Parmênides? perguntou Sócrates.

Porque eu imagino, Sócrates, que tu e todos os que admitem para cada coisa particular uma essência existente por si mesma, confessam de saída que nenhuma delas existe em nós.

A ser assim, observou Sócrates, de que jeito poderiam existir em si mesmas?

Falas com muito acerto, disse; de onde vem, que as ideias, que só são o que são por suas relações mútuas, têm sua essência própria somente em relação umas com as outras, não com relação ao que em nós são suas cópias ou como quer que sejam denominadas, e de cuja participação tiramos a designação certa de tudo o mais. Por outro lado, as coisas do nosso mundo que têm o mesmo nome que elas, só existem em relação umas com as outras, não com as ideias, sendo assim denominadas por elas mesmas, não por causa das ideias.

Que queres dizer com isso? perguntou Sócrates.

É o seguinte, respondeu Parmênides. Suponhamos que um de nós é senhor ou escravo do outro, não escravo do senhor em si mesmo, o senhor na sua própria essência, nem este, como senhor, é senhor do escravo em si mesmo, a essência do escravo: como homens, entre eles, é que serão uma coisa ou outra.

O senhorio em si mesmo é o que é com relação à escravidão em si mesma, e o inverso: a escravidão em si, com relação ao senhorio em si mesmo. As coisas do nosso mundo não têm ação sobre as daquele, nem as do outro mundo sobre as do nosso. O que eu digo é que aquela realidades só são o que são para elas mesmas e com referência a elas mesmas, exatamente como se dá com as coisas do nosso mundo. Ou não entendes o que eu falo?

Entendo tudo, respondeu Sócrates.

E com relação ao conhecimento, continuou, o conhecimento em si mesmo será conhecimento da verdade em si mesma?

Perfeitamente.

Cada conhecimento particular em si mesmo seria, por conseguinte, conhecimento de um ser em si mesmo. Ou não?

Certo.

Assim, nosso conhecimento viria a ser o conhecimento da verdade de nosso mundo; de onde se colhe que cada ramo do nosso conhecimento terá de ser conhecimento de determinadas coisas do nosso mundo.

Necessariamente.

Porém, conforme tu próprio admitiste, nem possuímos as ideias em si mesmas, nem elas podem existir entre nós.

Sem dúvida.

E não é pela ideia em si do conhecimento que são conhecidos gêneros em si mesmos?

Certo.

Ideias essas que não possuímos.

Justamente.

Sendo assim, não poderemos conhecer nenhuma ideia, visto não participarmos do conhecimento em si mesmo.

Parece que não.

Logo, são-nos desconhecidos o belo existente em si mesmo, e o bem e tudo o que admitimos como ideias com existência independente.

Quem sabe?

Atende agora ao que se me afigura ainda mais terrível.

Que será?

Não estás disposto a conceder que se há um gênero em si do conhecimento, terá de ser muito mais preciso do que o conhecimento do nosso mundo, tal qual como o da beleza e os de tudo o mais?

Concedido.

E que se algum ser tiver de participar desse conhecimento em si mesmo, não dirás que somente Deus possuirá esse conhecimento exatíssimo?

Necessariamente.

Ora, a posse do conhecimento em si não permitirá a Deus conhecer o que se passa no nosso mundo.

Por que não?

Porque já aceitamos, Sócrates, observou Parmênides, que nem aquelas ideias atuam nas coisas do nosso mundo, nem as coisas do nosso mundo naquelas ideias; separadamente, entre elas mesmas, é que umas atuam sobre outras.

Aceitamos, de fato.

Logo, se se encontra em Deus esse domínio supremo e esse conhecimento perfeito, nem esse domínio chegará nunca a dominar-nos, nem esse conhecimento a conhecer-nos ou seja ao que for do nosso mundo; porém, da mesma forma que não dominamos os deuses com nosso domínio, nem alcançamos nada das coisas divinas com nosso conhecimento: assim, também, pelas mesmíssimas razões, os deuses não têm domínio sobre nós nem conhecem os negócios humanos, na qualidade de deuses.

Não será uma proposição ousada em demasia, disse, privar Deus do conhecimento?

Tudo isso, Sócrates, voltou Parmênides a falar, e muito mais ainda está implícito nas ideias, no caso de terem estas existência própria e concebê-las alguém como algo independente. Quem ouve tal coisa fica perplexo, sendo levado a contestar sua existência ou, na hipótese de admiti-las, será obrigado a declarar que por força terão de ser desconhecidas da natureza humana. Quem assim se manifesta sabe o que diz e, conforme observamos há pouco, não será fácil demovê-lo de suas convicções. Só um indivíduo de dotes extraordinários será capaz de compreender que para cada coisa há um gênero à parte com existência independente, e alguém mais bem dotado, ainda, para descobrir tudo isso e ensiná-los devidamente aos outros, por meio de uma análise exaustiva.

Declaro-me de acordo contigo, Parmênides, observou Sócrates, pois quanto disseste concerta plenamente com minha maneira de pensar.

Por outro lado, Sócrates, observou Parmênides, se após considerar quanto ficou dito e todo o mais que poderia se acrescentado, não aceitar um a existência das ideias dos seres, admitindo para cada coisa uma ideia definida, não saberá para onde virar o pensamento, a menos que reconhecesse a existência de uma ideia para cada cosa, sempre igual a si mesma, com o que destruiria por completo a própria dialética, o que decerto já percebeste com tua habitual perspicácia, conforme creio.

É muito justo o que dizes, teria observado Sócrates.

E que farás da filosofia? Para onde te voltarás na ignorância de todas as coisas?

Por enquanto, não vejo saída.