Parmênides 127d-130a — início do debate uno-múltiplo

Carlos Alberto Nunes

Terminada essa parte, Sócrates lhe pediu que relesse a primeira hipótese do primeiro argumento, depois do que se manifestou: Que queres dizer com isto, Zenão? Se os seres são múltiplos, por força terão de mostrar, a um só tempo, semelhanças e dissemelhanças, o que não é possível. Nem o semelhante pode ser dissemelhante, nem o dissemelhante semelhante. Declaraste isso mesmo, ou fui eu que não compreendi direito?

Isso mesmo, respondeu Zenão.

Então, se o dissemelhante não pode ser semelhante, nem o semelhante dissemelhante, no mesmo passo não será possível existir o múltiplo, porque, se existisse, não poderia eximir-se desses atributos impossíveis. Mas, o fim precípuo de tua argumentação não visa a combater a crença geral de que o múltiplo existe? Não estás convencido de que cada um dos teus argumentos demonstra isso mesmo, e que, no teu modo de pensar, os argumentos por ti apresentados são outras tantas provas de que o múltiplo não existe? Foi isso o que disseste, ou não entendi bem?

De forma alguma, teria falado Zenão; apanhaste admiravelmente bem a intenção geral do escrito.

Compreendo, Parmênides, continuou Sócrates; nosso Zenão deseja tornar-se-te mais íntimo por vários meios, mas principalmente com a ajuda de seus escritos. No final de contas, o que ele afirma é mais ou menos o que tu próprio escreveste; porém introduzindo algumas modificações, quer dar-nos a impressão de que diz coisa diferente. Declaras em teus Poemas que Todo é um, em reforço do que aduzes argumentos belos e convincentes. De seu lado, ele nega a existência do múltiplo, para o que apresenta provas de todo o ponto fortes e superabundantes. Desse modo, quando um diz que o Uno existe e outro nega a existência do múltiplo, falando cada um como se nada tivesse de comum com o outro, quando em verdade ambos afirmam a mesmíssima coisa, o que enuncias parece voar muito por cima de nossas cabeças.

É isso mesmo, Sócrates, observou Zenão; porém não apanhaste à justa a verdade do meu livro, dado que, à maneira dos cães de Esparta, saibas descobrir o rastro e acompanhar o pensamento. Porém uma particularidade te escapou: é que este escrito absolutamente não se eleva a tais remígios, como te apraz atribuir à sua feitura, no sentido de ocultar aos homens suas sublimes pretensões. O que disseste a esse respeito é simples acessório. O fim precípuo do trabalho é defender, a seu modo, a tese de Parmênides contra os que pretendem ridicularizá-lo, como se da admissão do Uno decorressem as mais escarninhas consequências, que invalidam de raiz sua doutrina. É um escrito de combate contra os que defendem a existência do múltiplo, em que os golpes são devolvidos com usura e com a intenção manifesta de mostrar como decorrem consequências muito mais absurdas da hipótese do múltiplo, por eles defendida, do que da do Uno, para quantos a examinarem a preceito. O trabalho é produto do pendor para as disputas muito próprio do jovens; porém alguém mo roubou depois de pronto, antes de se me ter facultado o ensejo de considerar a sós comigo, se conviria ou não entregá-lo ao público. Foi o que não percebeste, Sócrates, por admitires que ele houvesse sido composto sem aquele espírito combativo, mas com a ambição da idade madura. No mais, conforme disse, tua apreciação não foi de todo má.

Bem; aceito a explicação, teria falado Sócrates, e admito que seja conforme declaraste. Porém dize-me o seguinte: não reconheces a existência em si mesma da ideia de semelhança, e a de uma outra, oposta a essa, de dissemelhança em si mesma, e que delas duas eu e tu participamos e todas as coisas a que damos a denominação de múltiplo? E que as coisas que participam da semelhança se tornam semelhantes, a esse respeito e na medida em que participam da dissemelhança, e uma e outra coisa as que participam das duas a um só tempo? Se todas as coisas participam dessas ideias, contrárias, e, pelo próprio fato dessa participação, ficam, no mesmo passo, semelhantes e dissemelhantes a elas mesmas: que há de surpreendente em tudo isso? Se alguém mostrasse semelhantes no ato de se tornarem dissemelhantes, ou o inverso: dissemelhantes passando a ser semelhantes, isso sim, eu tomaria como verdadeira maravilha! Porém dizer que as coisas que participam de uma e de outra apresentam ambos os caracteres, é o que não se me afigura, Zenão, contraditório; é como se alguém afirmasse que tudo é um pela participação da unidade e que esse mesmo todo é múltiplo por sua participação da pluralidade. Mas se me provassem que é múltipla a simples unidade, ou que o múltiplo é um: eis o que me surpreenderia sobremodo. E tudo o mais pelo mesmo estilo. Se me demonstrassem, outrossim, que os gêneros e as espécies apresentam em sua esfera própria esses caracteres opostos, haveria de que maravilhar-me. Mas, que há de extraordinário dizer alguém que eu sou ao mesmo tempo uno e múltiplo? Seria o caso, para provar minha pluralidade, de mostrar a diferença entre o lado direito e o esquerdo, a frente e o dorso, a porção superior e a inferior, pois de muitas maneiras, quero crer, participo da pluralidade. Ou então, para insistir na unidade, dizer que eu sou um dos sete indivíduos aqui presentes, visto participar da unidade. De onde se colhe que as duas assertivas são igualmente verdadeiras. A este modo, sempre que um se abalança a demonstrar a simultaneidade do Uno e do múltiplo em coisas com seixos, pedaços de madeira e outras mais da mesma natureza, dizemos que essa pessoa provou simplesmente a existência de unidades e da multiplicidade, não que o Uno seja múltiplo, e o inverso: o múltiplo, Uno. Com isso, não terá dito nada extraordinário, senão algo em que todos convirão. Porém se alguém, como afirmei neste momento, começar por distinguir umas das outras as ideias de si mesmas: semelhança e dissemelhança, pluralidade e unidade, repouso e movimento, e tudo o mais do mesmo gênero , e demonstrar, em seguida, que todas elas são capazes de unir-se umas com as outras o de separar-se: isto sim, Zenão, continuou a falar, é que me deixaria contentíssimo. A meu parecer, argumentaste neste domínio com bastante firmeza e decisão. Porém num ponto, torno a dizer, e que muito mais me alegrara, seria poder um demonstrar que tais perplexidades se entrelaçam de mil formas e o mesmo fizésseis com o que e apreendido apenas pelo entendimento, tal como exemplificastes com as outras que nos caem sob a vista.


Cousin

Socrate ayant écouté jusqu’à la fin, invita Zénon à relire la première proposition du premier livre. Cela fait, il reprit : (127e) Comment entends-tu ceci, Zénon : si les êtres sont multiples, il faut qu’ils soient à la fois semblables et dissemblables entre eux ? Or, cela est impossible ; car ce qui est dissemblable ne peut être semblable, ni ce qui est semblable être dissemblable. N’est-ce pas là ce que tu entends?

— C’est cela même, répondit Zénon.

— Si donc il est impossible que le dissemblable soit semblable et le semblable dissemblable, il est aussi impossible que les choses soient multiples ; car si les choses étaient multiples, il faudrait en affirmer des choses impossibles. N’est-ce pas là le but de tes raisonnements, de prouver, contre l’opinion commune, que la pluralité n’existe pas ? Ne penses-tu pas que chacun de tes raisonnements en est une preuve, et que par conséquent tu en as donné (128a) autant de preuves que tu as établi de raisonnements ? Voilà ce que tu veux dire, ou j’ai mal compris.

— Non pas, dit Zénon, tu as fort bien compris le but de mon livre.

— Je vois bien, Parménide, dit alors Socrate, que Zénon t’est attaché non seulement par les liens ordinaires de l’amitié, mais encore par ses écrits ; car il dit au fond la même chose que toi ; seulement il s’exprime en (d)’autres termes, et cherche à nous persuader qu’il nous dit quelque chose de différent. Toi, tu avances dans tes poèmes que tout est (128b) un, et tu en apportes de belles et de bonnes preuves ; lui, il prétend qu’il n’y a pas de pluralité, et de cela aussi il donne des preuves très nombreuses et très fortes. De la sorte, en disant, l’un que tout est un, l’autre qu’il n’y a pas de pluralité, vous avez l’air de soutenir chacun de votre côté des choses toutes différentes, tandis que vous ne dites guère que la même chose, et vous croyez nous avoir fait prendre le change à nous autres ignorants.

— Tu as raison, Socrate, répondit Zénon ; cependant tu n’as pas tout-à-fait saisi le vrai sens de mon livre, quoique tu saches très bien, (128c) comme les chiennes de Laconie, suivre la piste du discours. Ce que tu n’as pas compris, (d)’abord, (c)’est que je ne mets pas à cet ouvrage tant (d)’importance, et qu’en’écrivant ce que tu dis que j’ai eu en pensée, je n’en fais pas mystère, comme si je faisais là quelque chose de bien extraordinaire. Mais tu as rencontré juste en un point : la vérité est que cet écrit est fait pour venir à l’appui du système de Parménide, contre ceux qui voudraient le tourner en ridicule (128d) en montrant que si tout était un, il s’ensuivrait une foule de conséquences absurdes et contradictoires. Mon ouvrage répond donc aux partisans de la pluralité et leur renvoie leurs objections et même au-delà, en essayant de démontrer qu’à tout bien considérer, la supposition qu’il y a de la pluralité conduit à des conséquences encore plus ridicules que la supposition que tout est un. Entraîné par l’esprit de controverse, j’avais composé cet ouvrage dans ma jeunesse, et on me le déroba avant que je me fusse demandé s’il fallait (128e) ou non le mettre au jour. Ainsi, Socrate, tu te trompais en croyant cet écrit inspiré par l’ambition (d)’un homme mûr, au lieu de l’attribuer au goût de dispute (d)’un jeune homme. Du reste, je l’ai déjà dit, tu n’as pas mal caractérisé mon ouvrage.

— Soit, répondit Socrate : je crois que les choses sont telles que tu le dis ; mais dis-moi, ne penses-tu pas qu’il existe (129a) en elle-même une idée de ressemblance, et une autre, contraire à celle-là, savoir, une idée de dissemblance, et que ces deux idées existant, toi et moi et tout ce que nous appelons plusieurs, nous en participons ; que les choses qui participent de la ressemblance, deviennent semblables en tant et pour autant qu’elles y participent, et dissemblables celles qui participent de la dissemblance, et semblables et dissemblables en même temps celles qui participent à la fois des deux idées ? Or, que tout participe de ces deux contraires et que cette double participation rende les choses à la fois semblables et dissemblables entre elles, (129b) qu’y a-t-il là (d)’étonnant ? Mais si l’on me montrait la ressemblance elle-même devenant dissemblable et la dissemblance semblable, voilà ce qui m’étonnerait, tandis qu’il ne me paraîtrait pas extraordinaire que, participant de ces deux idées différentes, les choses fussent aussi différemment affectées, non plus que si on me démontrait que tout est un par participation de l’unité, et multiple par participation de la multiplicité. Mais prouver que l’unité en soi est pluralité, et la pluralité en soi unité, (129c) voilà ce qui me surprendrait ; et de même, pour tout le reste, il ne faudrait pas moins s’étonner si on venait à démontrer que les genres et les espèces sont en eux-mêmes susceptibles de leurs contraires ; mais il n’y aurait rien de surprenant à ce qu’on démontrât que moi je suis à la fois un et multiple. Pour prouver que je suis multiple, il suffirait de montrer que la partie de ma personne qui est à droite diffère de celle qui est à gauche, celle qui est devant de celle qui est derrière, et de même pour celles qui sont en haut et en bas ; car, sous ce rapport, je participe, ce me semble, de la multiplicité. Et, pour prouver que je suis un, on dirait que de (129d) sept hommes ici présents j’en suis un, de sorte que je participe aussi de l’unité. L’un et l’autre serait vrai. Si donc on entreprend de prouver que des choses telles que des pierres ou du bois, sont à la fois unes et multiples, nous dirons qu’en nous montrant là une unité multiple et une multitude une, on ne nous prouve pas que l’un est le multiple et que le multiple est l’un, et qu’on ne dit rien qui étonne et que nous n’accordions tous. Mais si, comme je viens de le dire, après avoir mis à part les idées en elles-mêmes, comme la ressemblance et la dissemblance, la multiplicité et l’unité, (129e) le repos et le mouvement et toutes les autres du même genre ; si, dis-je, on venait à démontrer que les idées sont susceptibles de se mêler et de se séparer ensuite, voilà, Zénon, ce qui me surprendrait. Je reconnais la force que tu as déployée dans tes raisonnements ; mais, je te le répète, ce que j’admirerais bien davantage, ce serait qu’on pût me montrer la même contradiction impliquée dans les idées elles-mêmes, (130a) et faire pour les objets de la pensée ce que tu as fait pour les objets visibles.


Jowett

When the recitation was completed, Socrates requested that the first thesis of the first argument might be read over again, and this having been done, he said : What is your meaning, Zeno ? Do you maintain that if being is many, it must be both like and unlike, and that this is impossible, for neither can the like be unlike, nor the unlike like — is that your position ?

Just so, said Zeno.

And if the unlike cannot be like, or the like unlike, then according to you, being could not be many ; for this would involve an impossibility. In all that you say have you any other purpose except to disprove the being of the many ? and is not each division of your treatise intended to furnish a separate proof of this, there being in all as many proofs of the not-being of the many as you have composed arguments ? Is that your meaning, or have I misunderstood you ?

No, said Zeno ; you have correctly understood my general purpose.

I see, Parmenides, said Socrates, that Zeno would like to be not only one with you in friendship but your second self in his writings too ; he puts what you say in another way, and would fain make believe that he is telling us something which is new. For you, in your poems, say The All is one, and of this you adduce excellent proofs ; and he on the other hand says There is no many ; and on behalf of this he offers overwhelming evidence. You affirm unity, he denies plurality. And so you deceive the world into believing that you are saying different things when really you are saying much the same. This is a strain of art beyond the reach of most of us.

Yes, Socrates, said Zeno. But although you are as keen as a Spartan hound in pursuing the track, you do not fully apprehend the true motive of the composition, which is not really such an artificial work as you imagine ; for what you speak of was an accident ; there was no pretence of a great purpose ; nor any serious intention of deceiving the world. The truth is, that these writings of mine were meant to protect the arguments of Parmenides against those who make fun of him and seek to show the many ridiculous and contradictory results which they suppose to follow from the affirmation of the one. My answer is addressed to the partisans of the many, whose attack I return with interest by retorting upon them that their hypothesis of the being of many, if carried out, appears to be still more ridiculous than the hypothesis of the being of one. Zeal for my master led me to write the book in the days of my youth, but some one stole the copy ; and therefore I had no choice whether it should be published or not ; the motive, however, of writing, was not the ambition of an elder man, but the pugnacity of a young one. This you do not seem to see, Socrates ; though in other respects, as I was saying, your notion is a very just one.

I understand, said Socrates, and quite accept your account. But tell me, Zeno, do you not further think that there is an idea of likeness in itself, and another idea of unlikeness, which is the opposite of likeness, and that in these two, you and I and all other things to which we apply the term many, participate — things which participate in likeness become in that degree and manner like ; and so far as they participate in unlikeness become in that degree unlike, or both like and unlike in the degree in which they participate in both ? And may not all things partake of both opposites, and be both like and unlike, by reason of this participation ? — Where is the wonder ? Now if a person could prove the absolute like to become unlike, or the absolute unlike to become like, that, in my opinion, would indeed be a wonder ; but there is nothing extraordinary, Zeno, in showing that the things which only partake of likeness and unlikeness experience both. Nor, again, if a person were to show that all is one by partaking of one, and at the same time many by partaking of many, would that be very astonishing. But if he were to show me that the absolute one was many, or the absolute many one, I should be truly amazed. And so of all the rest : I should be surprised to hear that the natures or ideas themselves had these opposite qualities ; but not if a person wanted to prove of me that I was many and also one. When he wanted to show that I was many he would say that I have a right and a left side, and a front and a back, and an upper and a lower half, for I cannot deny that I partake of multitude ; when, on the other hand, he wants to prove that I am one, he will say, that we who are here assembled are seven, and that I am one and partake of the one. In both instances he proves his case. So again, if a person shows that such things as wood, stones, and the like, being many are also one, we admit that he shows the coexistence the one and many, but he does not show that the many are one or the one many ; he is uttering not a paradox but a truism. If however, as I just now suggested, some one were to abstract simple notions of like, unlike, one, many, rest, motion, and similar ideas, and then to show that these admit of admixture and separation in themselves, I should be very much astonished. This part of the argument appears to be treated by you, Zeno, in a very spirited manner ; but, as I was saying, I should be far more amazed if any one found in the ideas themselves which are apprehended by reason, the same puzzle and entanglement which you have shown to exist in visible objects.

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