14. Os epicuristas reconheceram o noûs (Lucrécio: animus) como uma faculdade cognitiva distinta da aisthesis (ver noesis 14), mas num sistema materialista sem providência (pronoia) não tem qualquer papel cósmico importante. No estoicismo, todavia, o noûs humano ou hegemonikon (ver noesis 15) é uma manifestação do noûs cósmico ou logos que invade, dirige e governa tudo (D. L. VII, 135, 138). Chamar ao logos tanto noûs (no seu aspecto providencial) como physis (no seu aspecto criativo) é obscurecer a distinção que Aristóteles traçara entre os dois, mas o ponto de vista mais aristotélico (e platônico) começa uma vez mais a prevalecer na tradição a partir do tempo de Posidônio quando o noûs reaparece como uma característica exclusiva dos homens, imortal, produto do mundo supralunar (ver noesis 17, sympatheia 5). Os platônicos deste período, por outro lado, puderam afirmar a transcendência do noûs sem as restrições imanentistas impostas pela tradição estoica.
15. Desde o renascimento da teoria do eidos com Antíoco de Ascalão (ver Cícero, Acad. post. I, 30-33 onde Varrão dá o ponto de vista filosófico de Antíoco) houve um novo interesse pelos problemas da causalidade no kosmos noetos. Para resolver alguns dos problemas, os estudiosos platônicos deste período não hesitaram em recorrer a Aristóteles. Assim, os elementos puramente platônicos emergem de uma síntese do Bem para além do ser na República, do Uno do Parmênides, do noûs do Filebo, e do demiourgos do Timeu: a primeira causa é o noûs, fonte de todo o bem no universo, para além da qualificação e descrição (Albino, Epit. X, 1-4; sobre a causa «inefável», ver agnostos). Este protos noûs do Filebo é também o demiourgos do Timeu que contempla os eide na sua criação do kosmos, só que os eide estão agora localizados no espírito do demiourgos (ibid. XII, 1 e noeton 2).
16. Mas também há para isto uma posição aristotélica. O primeiro noûs pensa-se a si próprio e, embora ele próprio seja imóvel (akinetos), move outros como objeto de desejo (orekton, loc. cit.). Aristóteles designara ainda o proton kinoun como Deus e os seus comentadores posteriores identificaram ambos com o noûs poietikos do De anima. Albino, na descrição do protos noûs como pensando-se a si mesmo à maneira prescrita por Aristóteles (Epit. X. 3), tem um outro princípio subordinado, um segundo noûs transcendente que é sempre ativado e que é «o noûs de todo o céu», descrição que pelo menos sugere o proton kinoun da Metafísica. O que parece provável é que Albino tenha distinguido a causalidade final e eficiente que Aristóteles unira, atribuindo a primeira ao protos noûs que se move «como um objeto de desejo» (X, 2) e a segunda ao noûs subordinado. Há, finalmente, um terceiro noûs transcendente, uma faculdade da Alma do Mundo (X, 3). São aqui visíveis todos os motivos do neoplatonismo: três princípios transcendentes hipostasiados que podem ser denominados, em função da sua ênfase, o Bem, noûs, psyche, procedendo toda a causalidade do primeiro, mesmo aqui descrito como «semelhante ao sol» ou «Pai».
17. Está também presente um outro traço caraterístico não só do platonismo tardio mas igualmente de toda a tradição filosófica pós-aristotélica. Platão considera as estrelas como seres vivos inteligentes (ver ouranioi 6) e Aristóteles dá a cada uma um motor inteligente (ver kinoun 11-12, ouranioi 3). Os platonistas médios incorporaram também isto nos seus sistemas. Os planetas são seres vivos intelectuais que habitam no aither (Albino, Epit. XIV, 7) e abaixo deles encontram-se os daimones do aer, deuses também, filhos do «Pai», mais perfeitos do que os homens e responsáveis por augúrios e prodígios (ibid. XV, 2; Máximo de Tiro XI, 12; Apuleio, De deo Socr. 6; ver daimon 3-4, psyche 35).
18. Como já se indicou (ver 6 supra), o noûs – demiourgos em Platão parece estar subordinado aos eide e, por isso, ao Bem da República de igual modo. O primeiro noûs de Albino abarca todas estas entidades, mas, além disso, podem ver-se novas ênfases. O protos noûs começa a dar lugar ao hen – agathon do Parmênides e da República e a função do noûs – demiourgos a centralizar-se na segunda hipóstase. Estas são as opiniões de Numênio (ver Eusébio, Praep. Evang. XI, 356d-358b), como serão as de Plotino, roubadas, como dizem alguns, a Numênio (ver Porfírio, Vita Plot. XVII, 1). Mas há também diferenças. A segunda hipóstase de Numênio é dupla; a sua função primária, é a noesis, que degenera em dianoia discursiva devido ao seu envolvimento com a matéria (Eusébio, op. cit. XI, 537; Proclo, In Timeu III, 103). Em Plotino, que também faz uso do conceito de «atenção» (phrontis; ver noesis 21), a polaridade é transferida para a terceira hipóstase; é a alma cósmica que tem um lado «superior» e um «inferior» (ver psyche tou pantos, physis).
19. Plotino segue a tradição platônica geral ao fazer do noûs a segunda das três hipóstases. É o demiourgos na medida em que lhe fornece a psyche com os logoi que são as formas das coisas sensíveis (Enéadas V, 9, 3), mas em geral a função criadora pertence mais propriamente à physis, a parte inferior da psyche, cuja contemplação decai em atividade (praxis, III, 8, 4). Proclo dá mais ênfase ao noûs como arche deste mundo sensível mas concorda com Plotino em que a criação (ver também proodos) é uma consequência da theoria ou noesis (Elem. theol. prop. 174).
20. O primeiro princípio, o Uno, é perfeitamente auto-suficiente e de nada necessita de nada; o noûs cósmico, por outro lado, tem necessidade de si próprio, necessidade de se pensar a si próprio, e assim a sua operação da noesis é, em certo sentido, um regresso a si próprio (Enéadas V, 3, 13). O noûs é a energeia e o logos do Uno (V, 1, 6; confrontar a opinião de Fílon na rubrica logos 5) e um tipo de exteriorização pluralística da unidade absoluta do Uno, tal como o nosso raciocínio discursivo é um eikon da operação relativamente unificada do noûs cósmico (ver noesis 18). A atividade própria do noûs é uma compreensão directa e intuitiva dos noeta como unidade, não no sentido de que o noûs «pensa» os noeta, mas antes de que é os noeta (ver noeton 5).
21. O noûs cósmico, herança platônica, está ligado ao poder de raciocínio imanente no homem por uma espécie de ponte aristotélica. A distinção aristotélica da dissolução do noûs numa energeia activa e numa dynamis passiva é tomada e modificada por Plotino. Em Enéadas V, 9, 3 Plotino interroga-se a si próprio, na sua habitual maneira aporemática, sobre se há um noûs choristos, e depois passa a responder distinguindo entre um noûs que está na alma como um eidos na matéria e um noûs que «dá a forma à alma como o criador (poiotes) dá forma à estátua». Assim o noûs poietikos aristotélico transforma-se no dator formarum. O mesmo passo descreve seguidamente uma distinção entre os próprios eide. Os eide que o noûs dá à alma estão «perto da realidade», os recebidos pela matéria são «imagens e imitações» (eidola, mimemata: ver noeton 6).
22. Há, então, três graus de realidade entre os eide plotinianos. Os inferiores, os eide aistheta nas coisas materiais, são eikones das verdadeiras Formas. Servem tanto um propósito cognitivo como paradigmático. Existindo nos outros formam a base da sensação no modelo aristotélico (ver aisthesis 26); existindo em si são os paradigmas causais da produção dos outros seres (ver logoi spermatikoi, physis). Há também os eide noeta ou, como são chamados do platonismo médio em diante, as ideai, que existem primariamente no noûs cósmico onde constituem o kosmos noetos ou, depois da doação, no noûs humano imanente onde, como «traços do noûs», fornecem os fundamentos para alguns dos nossos juízos (ver noesis 19 e, para um tratamento mais lato das ideai, noeton). [Termos Filosóficos Gregos, F. E. Peters]