A mitologia grega é, pois, uma physiomythía, que ainda não é a physiologia dos filósofos, para os quais, após a teoria da natureza, vem uma teoria do homem e, por fim, uma teoria da divindade. Decerto que há uma «filosofia do mito» (título de uma obra de M. Untersteiner, 1946, 1.a ed.). Mas entendemos bem o que esta expressão deveria significar. Fisiologia do mito não é uma fisiologia para a qual o mito aponta, uma fisiologia que o mito «quer dizer», mas não diz, porque só a filosofia o pode dizer. Pelo contrário, physiomythia, impropriamente chamada de «fisiologia do mito», é aquela que o próprio mito nos diz e precisamente nos termos em que diz. Se o entendermos assim, logo se nos abrirá um caminho para entender o que o mito é.
Como fisiologia mítica (ou physiomythia), o mito é expressão do que na filosofia há-de ser uma physis; porém de uma physis que só miticamente se pode expressar. De outro modo expressa, não seria a mesma; e a mesma só da mesma maneira pode ser expressa. Esta physis, que não é a Natureza que a filosofia, enquanto física, teorizará; é o mundo em que os mitos acontecem, e esse acontecer é que determina a essência e a existência do mundo mítico – a fisiologia do mito, em suma.
Deste ponto, poderíamos partir para uma nova exegese dos mitos gregos, e mesmo dos não gregos, que tanto se aparentam com os pré-gregos. Se perguntarmos, não o que significam as teogonias, as cosmogonias ou as teocosmogonias, as metamorfoses, as catábases, as hierogamias e outras classes de «argumentos» congêneres; se inquirirmos, não o que eles «querem dizer» ou o que efetivamente dizem aos que habitam o mundo que é o nosso ambiente atual, mas sim qual é o kósmos, qual o mundo em que esses acontecimentos podem ocorrer, afigura-se-nos que novos e surpreendentes horizontes se abririam a nossos olhos. Novos horizontes que seriam, afinal, outros tantos cenários sobre tablados bem diversos daquele em que se representa o drama humano e até «demasiado humano» desta cultura que já foi «ocidental», mas se vai tornando ecumênica, descendo (ou subindo?) aceleradamente um íngreme pendor, que nos levará, em círculo ou em espiral mais ou menos aberta, ao ponto ou à linha donde partimos: a fabricação de instrumentos que fabricam coisas, e de instrumentos que fabricam outros instrumentos mais eficazes para a fabricação de outras coisas mais sofisticadas, isto é, a esse paleolítico elevado à mais alta potência, a que se dá o nome de «desenvolvimento tecnológico».
Por esse caminho chegaríamos talvez a compreender que dramas representados e teatros em que eles se representam, uns dos outros dependem (e que uns e outros, por sua vez, só dependem do Outro), lograríamos compreender que a cena teatral é co-projectada pela ação dramática, dando assim a parecer que esta cria o próprio cenário. Noutros termos e para voltar ao nosso tema: dir-se-ia que a mitologia objectiva um mundo, o próprio mundo dela. O que mais nos custa a crer é que tantos mundos «objetivos» coexistam, com a «objectividade» do único que supomos realmente existir. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)