Há pelo menos uma coisa que posso dizer sobre aqueles que escreveram ou escreverão e afirmam ter competência nos assuntos de que trato, quer afirmem ter sido instruídos neles por mim ou por outra pessoa, quer os tenham encontrado por si próprios: é que é impossível, pelo menos na minha opinião, que saibam alguma coisa sobre estes assuntos. Em todo o caso, não existe, nem nunca existirá, nenhum tratado da minha autoria sobre este assunto, porque, ao contrário de outras formas de conhecimento, é um conhecimento que não pode ser formulado; nasce do contato assíduo com o que é o seu próprio objeto, da partilha da sua vida, e surge na alma, como a chama que brota de uma faísca e depois cresce espontaneamente. O que sei também é que sou eu quem melhor o poderia apresentar por escrito ou oralmente, e que sou quem mais sofreria com a imperfeição do Tratado. Se eu fosse da opinião de que o assunto poderia ser escrito e formulado como deve ser para o público, o que poderia ter feito na minha vida de mais belo do que publicar algo tão precioso para todos e trazer à luz a verdadeira natureza das coisas? Mas não creio que um tal empreendimento fosse bom para a humanidade, para além dos raros indivíduos que o podem encontrar por si próprios graças a simples indicações. Só estaríamos a encher os outros de um desprezo indecoroso que não tem fundamento, ou de uma pretensão tão arrogante quanto vã. (…)
Há uma verdadeira razão pela qual não devemos ousar escrever nada sobre este assunto, uma razão que já dei muitas vezes, mas que sinto que devo repetir mais uma vez. (…)
Todos os modos de conhecimento começam a exprimir a qualidade, bem como o ser de cada coisa, por meio do instrumento falho que é a linguagem. É por isso que nenhum homem sensato se arriscaria a confiar-lhe o seu pensamento, especialmente sob a forma fixa de caracteres escritos. (…) É precisamente por isso que qualquer homem sério, ocupado com assuntos sérios, terá o cuidado, ao escrever, de não deixar que tais assuntos caiam no domínio público e os exponha assim à malícia e às dúvidas. Assim, em suma, quando vemos obras escritas sob a forma de leis por um legislador, ou por qualquer outra pessoa sobre qualquer outro assunto, devemos estar atentos ao que as caracteriza: para ele, pelo menos se for sério, não é aquilo que é sério, mas sim aquilo que se situa num lugar qualquer do que lhe pertence de mais belo. Se, pelo contrário, foi o que ele considera sério que depositou assim nos caracteres da escrita, então devemos dizer dele: “a sua mente foi assolada” não “pelos deuses”, mas pelos mortais. (Platão, Carta VII)