— Mas, quando há no homem impulsos contrários e simultâneos em relação ao mesmo objecto, dizemos que há necessariamente nele dois elementos. [467]
— Pois não!
— Ora um estará pronto a obedecer à lei, naquilo que ela lhe prescrever?
— Como?
— A lei diz que o que há de mais belo é conservar a calma o mais possível nas desgraças e não se indignar, uma vez que não se sabe o mal e o bem que há em tais acontecimentos, nem se adianta nada, positivamente, em os suportar c com dificuldade; nem tudo o que é humano merece que se lhe dê muita importância; e o que poderá acudir-nos o mais depressa possível é entravado pelo desgosto.
— A que te referes?
— À reflexão sobre o que nos aconteceu; e, tal como quando se lançam os dados, assim devemos endireitar as nossas próprias posições, de acordo com o que saiu, pelo caminho que a razão escolher como melhor, e, se nos baterem, não devemos fazer como as crianças, que levam a mão ao sítio da pancada e perdem o tempo a gritar, mas acostumar d a alma a ser o mais rápida possível a curar e a endireitar o que caiu e adoeceu, eliminando as lamentações com remédios.
— Seria a melhor maneira de nos comportarmos perante a adversidade.
— Ora, é a melhor parte de nós que quer seguir a razão.
— É evidente.
— Mas a parte que nos leva à recordação do sofrimento e aos gemidos e que nunca se sacia deles, acaso não diremos que é irracional, preguiçosa e propensa à cobardia?
— Diremos, pois.
e — Ora, o que contém material para muita e variada imitação é a parte irascível; ao passo que o carácter sensato e [468] calmo, sempre igual a si mesmo, nem c fácil de imitar nem, quando se imita, é fácil de compreender, sobretudo num festival26 e perante homens de todas as proveniências, reunidos no teatro. Porquanto essa imitação seria de um sofrimento que, para eles, é estranho.
— Absolutamente.
— É evidente desde logo que o poeta imitador não nasceu com inclinação para essa disposição de alma, nem a sua arte foi moldada para lhe agradar, se quiser ser apreciado pela multidão, mas sim com tendência para o carácter arrebatado e variado, devido à facilidade que há em o imitar.
— É evidente.
— Por conseguinte, temos razão em nos atirarmos a ele desde já, e em o colocar em simetria com o pintor. De facto, parece-se com ele no que toca a fazer trabalho de pouca monta em relação à verdade; e, no facto de conviver com a outra parte da alma, sem ser a melhor, nisto também se assemelha a ele. E assim teremos desde já razão-para não o recebermos numa cidade que vai ser bem governada, porque desperta aquela parte da alma e a sustenta, e, fortalecendo-a, deita a perder a razão, tal como acontece num Estado, quando alguém toma poderosos os malvados e lhes entrega a soberania, ao passo que destruiu os melhores. Da mesma maneira, afirmaremos que também o poeta imitador instaura na alma de cada indivíduo um mau governo, lisonjeando a parte irracional, que não distingue entre o que é maior e o que é menor, mas julga, acerca das mesmas coisas, ora que são grandes, ora que são pequenas, que está sempre a forjar fantasias, a uma enorme distância da verdade.