Ullmann: Natureza do Uno

(Excertos de “Plotino, um estudo das Enéadas”, de R. A. Ullmann

O Uno é o Princípio soberano de tudo, também das hipóstases, isto é, do Noûs e da Alma do mundo. A palavra hipóstase, aplicada ao Uno, faz-nos entender que aquilo que está além do ser é mais do que ser simplesmente: é o Supra-Ser, o Supra-Bem, o Supra-Belo. Plotino denomina-o tò epékeina tês ousías. O Uno, ademais, identifica-se com sua vontade: “A vontade dele (Uno) é também a sua essência” (En. VI, 8, 13). A vontade constitui a sua independência, a sua auto-suficiência, o domínio de si e, ao mesmo tempo, a sua transcendência. Em razão disso, a processão ou emanação é livre, porquanto não há quem possa obrigar o Uno a produzir algo. Podemos denominá-la “libertas ab extrinseco”. Em outros termos, ele não pode ser coagido. E, paradoxalmente, a apórroia é necessária, porque o Uno quer expandir, comunicar a sua superabundância (Cf. En. V, 2, 1,9-10). Estamos na presença de uma necessidade, sim, mas de uma necessidade moral, no sentido de o Uno querer difundir-se, consoante o axioma bonum est diffusivum sui1. Isso significa que nada é produto do acaso ou de um fatum mecanicista. Não vale, pois, para Plotino, o que diz Dante, referindo-se a Demócrito: “II mondo a caso pone”. Se o Uno agisse obrigado pela anánkê, com destino inevitável, ele agiria contra a razão. A necessidade, aqui, quer dizer impossibilidade de agir de outra forma do que age, isto é, produzindo entes finitos, mas permanecendo ele próprio infinito e perfeito. “Ele (Uno) não é possuído pela necessidade, mas ele é a necessidade e a lei das demais coisas” (En. VI, 8, 10, 34-36). Isso tudo se entende como superabundância de poder. E mais. O Uno “é o que deve ser: portanto, não por acidente, mas por necessidade; e essa necessidade é o princípio de todas as outras necessidades” (En. VI, 8, 9, 14-15). O mundo é efeito; o Uno, causa eficiente2. O mundo é o que é, porque o Uno assim o quis. Visto no Deus cristão não haver um antes e um depois, ele não cria por deliberação ou decisão, atualizando um projeto, assim também o Uno – que é simples, eterno – não delibera, para criar. Dizemos “deliberar”, antropomorficamente ou analogicamente. Isso significa que o Uno não age às cegas3. No Uno não há nada inconsciente ou inerte. Ele é “plenamente senhor de si”4. Por isso, “é difícil crer que o que ele faz ou o que provém do seu poder lhe escape de qualquer modo que seja”5.

Assim, a soberana superioridade do Uno aponta para a sua interioridade mais íntima. A liberdade do Uno Plotino expressa-a com estas palavras incisivas: “(…) ele não é escravo de si mesmo (mêdê douleion esti heautoû)” (Cf. En. VI, 8,21). Nisso consiste a sua ipseidade. Por isso, a liberdade radical do Uno exclui toda e qualquer intrusão de elementos estranhos e fundamenta a dependência radical dos entes que dele dimanam. Ele é a plenitude do Ser.

A liberdade de produzir faz do Uno o Princípio real de tudo, o autor de quanto não é ele próprio. Por isso, o que não é o Uno, mas provindo dele, é diverso dele (hetérou óntos tôn pántôn: En. VI, 7,42, 13).

Porém, o Uno e o múltiplo acham-se unidos, no sentido de que o múltiplo participa do Uno, sem, no entanto, haver dependência deste com relação àquele. Vale, sim, o inverso. Os entes participam dele (não são partes dele!), sem que ele se divida; em produzindo, ele não esgota a sua superabundância, nem se empobrece6. Em outras palavras: o Uno é capaz de agir no mundo, sem que nele se verifique uma mudança. Assim logra-se falar em transcendência entitativa e imanência operativa.

Pelo exposto, percebem-se alguns traços de originalidade na concepção plotiniana quanto à natureza do Uno (Deus ou Absoluto) e à sua relação com o mundo.


  1. Não é artifício literário dizer que a “difusão do amor”, na emanação plotiniana, constitui-se em doação: “L’idea di una donazione nella quale colui che dona non viene sminuito si incontra ad. es. anche in Numenio (…)” (SZLEZAK, Thomas Alexander, Platone e Aristotele nella dottrina del Nous di Plotino (Temi metafisici e probl. del pens. ant.) (Milano, 1997), p. 149, nota 340). 

  2. “O Uno é causa num sentido eminente e mais verdadeiro, pois contém simultaneamente todas as coisas que devem nascer dele para constituir a Inteligência, e é o genitor de uma realidade que não é casual, mas como ele a quis” (path:/Eneada-VI-8|En. VI, 8, 18, 39-42). 

  3. “In quanto espressione dell’essenza dei Bene e dell’intenzionalità che in ciò si rivela, l’Uno esclude, per una comprensione del mondo, il caso e il destino, ma anche la necessita cieca e costrittiva in quanto forme dell’irrazionalità. Il rifiuto della tychê, del tò synébê, dell’autómaton. come essenza o struttura del Principio, e con esso anche del suo mondo, che ricorre continuamente come un ‘leitmotiv’ attraverso le numerose argomentazioni di VI, 8, si conclude nella giustifícazione di una origine in se chiara e ‘razionale’, che come assoluta libertà vuole ciò che è” (BEIERWALTES. Werner, Plotino. Un cammino di liberazione verso l’interiorità, lo spirito e l’uno (Temi metafisici e probl. del pens. ant.), 2. ed. (Milano, 1993), p. 59-60). “(…) l’Uno genera ciò che vien dopo di lui non già perché mosso da un cieco istinto, ma perché è assoluto sé stesso, pienezza totale e quindi potenza generativa inesauribile e trabocante” (MAGRIS, Aldo, Invito al pensiero di Plotino (Milano, 1986), p. 99). 

  4. “Kyrios pánté heautoû” (path:/Eneada-VI-8|En. VI, 8, 13, 10). 

  5. TROUILLARD, Jean, «La Procession plotinienne» (Paris, 1955), p. 79. 

  6. “La véritable efficacité est la fécondité de surabondance, le surplus gratuit d’une opulence qui ne peut être que généreuse, justement parce qu’elle n’a rien à désirer ni à perdre” (TROUILLARD, op. cit., p. 71).