POL 259c-262a: O Político em relação à função real

ESTRANGEIRO — Por outro lado, é evidente também que um rei para manter-se no poder não recorre à força das mãos ou ao vigor de seu corpo, mas à força de sua inteligência e de sua alma.

SÓCRATES, O JOVEM — É evidente.

ESTRANGEIRO — Então diremos que o rei tem muito mais relação com a ciência teórica do que com as artes manuais, ou com todas as artes práticas?

SÓCRATES, O JOVEM — É certo.

ESTRANGEIRO — Poderemos fazer então da ciência política e do político, da ciência real e do homem real, uma só unidade?

SÓCRATES, O JOVEM — Evidentemente.

ESTRANGEIRO — Não seria conveniente então, a fim de proceder com método, classificar a ciência teórica?

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Examina, pois, com cuidado, se nela encontramos uma dualidade de conhecimento.

SÓCRATES, O JOVEM — Qual?

ESTRANGEIRO — A seguinte: lembras-te de que falávamos da arte do cálculo. . .

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — Pois toda ela faz parte, creio eu, das ciências teóricas.

SÓCRATES, O JOVEM — Nem poderia ser de outro modo.

ESTRANGEIRO — Bem, o cálculo, que nos dá a conhecer a diferença entre os números, terá ainda outra função além daquela de julgar estas diferenças?

SÓCRATES, O JOVEM — Que teria ele mais a fazer?

ESTRANGEIRO — Nenhum arquiteto trabalha como operário, mas apenas dirige os operários.

SÓCRATES, O JOVEM — É certo.

ESTRANGEIRO — A sua contribuição é um conhecimento, e não uma colaboração manual.

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — Seria certo então dizer que ele participa da ciência teórica?

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Ele, no entanto, uma vez traçado o plano, não deve considerar-se livre e abandonar a tarefa como o faria o calculista. Ao que creio, cabe-lhe ainda indicar a cada um dos operários tudo quanto lhes compete fazer até que tenham terminado todo o trabalho.

SÓCRATES, O JOVEM — É certo.

ESTRANGEIRO — Assim, pois, todas essas ciências são teóricas, incluindo as que participam da arte do cálculo, mas os dois gêneros que elas formam diferem; pois um deles, em seus cálculos, apenas julga, e outro, além de julgar, também dirige.

SÓCRATES, O JOVEM — Parece que sim.

ESTRANGEIRO — Se então distinguirmos em toda a ciência teórica uma parte a que chamaremos diretiva e outra crítica, teremos feito uma divisão correta? SÓCRATES, O JOVEM — É o que creio.

ESTRANGEIRO — Mas quando realizamos alguma coisa em comum é mister que nos sintamos felizes em nos entendermos.

SÓCRATES, O JOVEM — Sem dúvida.

ESTRANGEIRO — E, enquanto nós assim nos sentimos felizes, não nos preocupamos com o que pensam os outros.

SÓCRATES, O JOVEM — Claro.

ESTRANGEIRO — Pois bem, em qual dessas duas partes colocaremos o rei? Na arte crítica, com o papel de simples espectador, ou será melhor decidirmos pela arte diretiva, pois na realidade ele ordena, como o senhor?

SÓCRATES, O JOVEM — Não há razão para hesitar.

ESTRANGEIRO — Devemos agora examinar se também a arte de dirigir permite qualquer divisão. Penso que do mesmo modo que na arte dos comerciantes se distinguem os produtores dos revendedores, da mesma foram se diferencia o gênero real do gênero dos arautos.

SÓCRATES, O JOVEM — Como?

ESTRANGEIRO — Os comerciantes, comprando as mercadorias produzidas por outrem, as revendem a terceiros.

SÓCRATES, O JOVEM — Claro.

ESTRANGEIRO — Assim também a família dos arautos recebe as decisões alheias para transmiti-las a terceiros.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade.

ESTRANGEIRO — E então? Confundiremos a arte do rei com a do intérprete, do patrão de barco, do adivinho, do arauto e muitas outras semelhantes, que têm em si, realmente, um poder diretivo? Ou preferes que, prosseguindo a nossa comparação, forjemos, por analogia, um outro nome, pois nenhum existe para designar esse gênero de dirigentes cujo mando deriva deles mesmos? Este característico servirá para a nossa divisão e assim poremos o gênero real na classe autodirigente sem nos preocuparmos com as demais e darmos a elas outro nome qualquer, pois a nossa pesquisa tem por objeto o dirigente e não o oposto do dirigente.

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — Ora, muito bem, se o gênero em questão está bem separado dos outros por meio desta oposição, do poder pessoal e do poder de empréstimo, é mister que o dividamos, por sua vez, se encontrarmos nele possibilidade para isso.

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Julgo que há essa possibilidade. Acompanha-me e faze comigo essa divisão.

SÓCRATES, O JOVEM — Qual?

ESTRANGEIRO — Quando pensamos em dirigentes, no exercício de alguma direção, não vimos também que as suas ordens têm sempre como finalidade alguma coisa a ser produzida?

SÓCRATES, O JOVEM — Evidentemente.

ESTRANGEIRO — Pois bem. Não é difícil dividir-se em duas partes tudo o que se produz.

SÓCRATES, O JOVEM — De que maneira?

ESTRANGEIRO — Uma parte desse todo é formada pelos seres inanimados, e a outra pelos seres animados.

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — É desse mesmo modo que a parte diretiva da ciência teórica deve ser dividida.

SÓCRATES, O JOVEM — Como?

ESTRANGEIRO — Atribuiremos uma das suas partes à produção dos seres inanimados e a outra à dos seres animados, e assim teremos uma primeira divisão do conjunto.

SÓCRATES, O JOVEM — Perfeitamente.

ESTRANGEIRO — Deixemos de lado uma das partes e tomemos outra; e novamente dividamos essa parte em dois.

SÓCRATES, O JOVEM — Que parte queres que tomemos?

ESTRANGEIRO — Naturalmente aquela que dirige os seres vivos. É natural que a ciência real não dirige, do mesmo modo que a arquitetura, coisas sem vida: seu papel é muito mais nobre. É sobre os seres vivos que ela reina e é sobre eles que ela sempre exerceu o seu império.

SÓCRATES, O JOVEM — É certo.

ESTRANGEIRO — No que diz respeito à população e à criação dos seres vivos é possível distinguir a individual e o cuidado coletivo pelos seres que vivem em rebanhos.

SÓCRATES, O JOVEM — É claro.

ESTRANGEIRO — Não consideremos o político como criador de indivíduos, tal como o lavrador que cuida do seu boi ou do tratador que cuida de seu cavalo, mas sim como o criador de todos os cavalos ou de todos os bois.

SÓCRATES, O JOVEM — O que disseste é evidente.

ESTRANGEIRO — A parte relativa à criação de seres vivos, especialmente relacionada com grupos, chamaremos de “criação em rebanhos” ou de “criação coletiva”?

SÓCRATES, O JOVEM — Daremos o nome que convier.

ESTRANGEIRO — Muito bem, meu caro Sócrates! Se continuares assim serás um sábio na tua velhice. Façamos, pois, como dizes. De que maneira seria possível, porém, mostrar que há duas espécies de rebanhos e, ao mesmo tempo, conseguir que este nosso inquérito, em lugar de ser relativo a um duplo objeto, se faça apenas em relação à sua metade?