POL 262a-264b: Regras de método: divisão e especificação

SÓCRATES, O JOVEM — Aplicarei todos os meus esforços. A criação de homens, todavia, parece-me ser diversa da dos animais.

ESTRANGEIRO — Distinguiste com diligência e coragem. Tomaremos todo o cuidado a fim de não incidir mais uma vez em erro.

SÓCRATES, O JOVEM — Que erro?

ESTRANGEIRO — Não ponhamos de parte, isolada, uma pequena porção em face de outras maiores, sem considerar a sua espécie. Cuidemos, ao contrário, que a parte traga em si a espécie. É fácil, por certo, separar logo o objeto que se procura do restante, mas é preciso ter sorte para desse modo acertar. Assim, tu, ainda há pouco, acreditaste fazer uma divisão e precipitaste o teu raciocínio, logo que percebeste que ele dizia respeito aos homens. Mas de fato, meu amigo, essas pequenas divisões não deixam de oferecer perigo. É mais seguro proceder por partes, dividindo as metades. Assim, há mais probabilidade de encontrar os caracteres específicos. Ora é isso que principalmente importa na nossa pesquisa.

SÓCRATES, O JOVEM — Que queres dizer com isso?

ESTRANGEIRO — Agrada-me a tua índole, e, por isso, falarei mais claramente. No ponto em que estamos é impossível explanar o que disse a não ser de modo imperfeito. Não obstante, procurarei fazê-lo tendo em mira maior clareza.

SÓCRATES, O JOVEM — Por que dizes então que a nossa divisão não fora feita corretamente?

ESTRANGEIRO — Porque é o mesmo que tentar alguém dividir a humanidade em duas partes, como costuma a maioria, isto é, separando-a como se o gênero helênico constituísse uma unidade distinta das demais e dando-se a estas o nome comum de “bárbaros”; supondo que por causa dessa denominação coletiva formem também uma unidade, quando de fato são numerosíssimas, distintas entre si e de linguagens bem diferentes, ou ainda, se se acreditasse que para dividir os números por dois, bastasse apenas destacar a cifra “dez mil” de todos os outros e colocá-la à parte, como que constituindo uma só espécie e dar ao resto um único nome acreditando, desta vez ainda, que esse simples nome fosse suficiente para criar um segundo gênero em face do primeiro. Creio que a divisão seria melhor; que melhor seguiria às formas específicas e seria mais dicotômica se, dividindo os números em “pares” e “ímpares”, dividíssemos, do mesmo modo, o gênero humano em machos e fêmeas; e se nos decidíssemos a não separar nem caracterizar, relativamente aos demais, os Lídios, os Frígios, ou outras unidades senão quando já não fosse mais possível obter uma divisão em que cada um dos termos seria, ao mesmo tempo, gênero e parte.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade. Mas, caro Estrangeiro, como poderia alguém conhecer com maior clareza que o gênero e a parte não são idênticos mas diferentes?

ESTRANGEIRO — Sócrates, tu, homem encantador, desejas algo que não é fácil. Já estamos desviados de nossa discussão mais que o necessário, e queres desviá-la ainda mais! Por ora, convém que voltemos ao nosso trabalho. O problema que propões discuti-lo-emos em outra ocasião, com calma, como bons pesquisadores. Cuidado, porém! Não penses que de mim ouviste, sobre esse ponto, uma perfeita explicação.

SÓCRATES, O JOVEM — Que explicação?

ESTRANGEIRO — Que gênero e parte são coisas diversas.

SÓCRATES, O JOVEM — De que maneira?

ESTRANGEIRO — O que for uma espécie será necessariamente parte daquilo de que é espécie; mas nada impede que a parte seja, ao mesmo tempo, uma outra espécie. Estas são, caro Sócrates, das duas explicações aquela que tu deveras dar como sendo minha.

SÓCRATES, O JOVEM — É o que sempre direi.

ESTRANGEIRO — Mais uma coisa, agora.

SÓCRATES, O JOVEM — Qual?

ESTRANGEIRO — Lembras-te onde estávamos antes da digressão que nos trouxe até aqui? Era, creio, no momento em que te perguntava como se podia dividir a arte de criar os rebanhos, e em que me declaraste, com tanta afoiteza, que há dois gêneros de seres vivos: o gênero humano e, de outro lado, todo o restante dos animais, constituindo um só bloco.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade.

ESTRANGEIRO — Nessa passagem notei que tu, separando uma parte, pensavas que todos os outros seres constituíssem um gênero, pois que lhes deste o nome de “animais”.

SÓCRATES, O JOVEM — De fato assim foi.

ESTRANGEIRO — Mas, meu intrépido amigo! segundo essa maneira de julgar, outro ser vivo dotado de inteligência — o que parece verificar-se com os grous ou com outras espécies de animais — poderia classificar do mesmo modo que tu classificas: oporia os grous, como integrando um gênero a todos os outros seres vivos e, orgulhoso, consideraria os demais seres, inclusive os homens, como pertencentes a uma mesma família, dando-lhes talvez o nome de “animais”. Procuremos, pois, evitar erros semelhantes.

SÓCRATES, O JOVEM — Como?

ESTRANGEIRO — Não dividindo o gênero inteiro dos animais, a fim de não incorrermos no mesmo erro.

SÓCRATES, O JOVEM — De fato, é o que se deve evitar.

ESTRANGEIRO — Já antes cometêramos erro idêntico.

SÓCRATES, O JOVEM — Como?

ESTRANGEIRO — Lembras-te de que havíamos considerado toda a parte diretiva da ciência teórica, no gênero da “criação de animais”, de animais em rebanhos?

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — Mas nesse caso, já não estaria implícita a divisão dos animais em mansos e selvagens? Aqueles que, por sua natureza, podem ser domesticados chamam-se mansos, e selvagens os que não são domesticáveis.

SÓCRATES, O JOVEM — Bem.

ESTRANGEIRO — A ciência que perseguíamos sempre se referiu aos mansos, devendo ser procurada entre as criaturas que vivem em rebanhos.

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — Não faremos a divisão como antes fizéramos, tendo em vista todos os seres; nem nos apressaremos a atingir a política, pois que isso nos imporia o contratempo que está cominado no provérbio1).

SÓCRATES, O JOVEM — Qual?

ESTRANGEIRO — O de caminhar com maior pressa e só mais tarde chegar ao fim.

SÓCRATES, O JOVEM — Feliz contratempo, caro estrangeiro.


  1. Os gregos possuíam o seguinte provérbio: “Apressa-te devagar”, cujo sentido é: quem corre muito depressa cai e chega ao fim mais tarde do que aquele que não corre. O eleata refere-se ao jovem que quer descobrir com demasiada rapidez a arte real e que por isso faz divisões precipitadas e temerárias. (N. do T.