ESTRANGEIRO — Partiremos de outro ponto, prosseguiremos por outro caminho.
SÓCRATES, O JOVEM — Qual?
ESTRANGEIRO — Nesta conversa falaremos de algo que parece uma brincadeira, servindo-nos de grande parte de uma grande lenda; após o que, retomaremos até ao fim o ponto em que estávamos, prosseguindo, de divisão em subdivisão, até que cheguemos ao fim desejado. Não é esse o método que se impõe?
SÓCRATES, O JOVEM — Certamente.
ESTRANGEIRO — Presta bem atenção à minha lenda, como o costumam fazer as crianças. Aliás, não estás tão distante dos anos de infância!
SÓCRATES, O JOVEM — Fala!
ESTRANGEIRO — Contavam-se, então, muitas lendas de eras remotas e que ainda hão de ser contadas. Uma delas versa sobre a luta de Atreu e Tiestes. Ouviste contar e certamente guardas na memória o que, segundo dizem, aconteceu naquele tempo.
SÓCRATES, O JOVEM — Referes-te, talvez, à lenda do cordeiro de ouro?1)
ESTRANGEIRO — Não. Refiro-me à mudança que se operou no nascer e no por do sol e de outros astros. Naquele.tempo desapareciam onde atualmente nascem e levantavam-se onde agora se põem. Foi então, que, para testemunhar ohorrível crime de Atreu, Deus alterou o seu curso para a ordem atual.
SÓCRATES, O JOVEM — É o que se conta2).
ESTRANGEIRO — Também ouvimos falar muitas vezes do reino de Crono .
SÓCRATES, O JOVEM — Muitíssimas.
ESTRANGEIRO — Diz-se também que os homens, nesses tempos, nasciam da terra, e não uns de outros.
SÓCRATES, O JOVEM — É o que se diz em muitas das velhas lendas.
Atreu e Tiestes eram dois irmãos e lendários príncipes que viviam a disputar. O cordeiro de ouro havia sido dado a Atreu precisamente para causar discórdia. (N. do T. ↩
Conforme uma lenda, Atreu convidou Tiestes com seu filho para jantar. Quando o pequeno estava brincando no pátio, prendeu-o Atreu, matou-o e, assando-lhe a carne, pô-la na mesa para ser servida. Tiestes, sem de nada suspeitar, comeu-a. Perguntando onde estava o menino, Atreu, sorridente, mostrou-lhe a cabeça do pequeno, explicando que há pouco ele comera a carne do próprio filho. Desse crime monstruoso, a única testemunha foi o deus do sol. De acordo com a mitologia, o sol é a coroa brilhante do deus que dia após dia percorre num carro a abóboda celeste, produzindo assim a luz do dia. A divindade em questão tudo vê, e, quando presenciou o crime que se acabava de cometer, perturbada virou a direção do carro. E desde aquele tempo o sol não mais nasce no oeste e sim a leste. Outros astros o acompanharam, mudando do mesmo modo o sentido de seus movimentos. (N. do T. ↩