POL 271c-272d: O reino de Cronos: os pastores divinos da Idade de Ouro

SÓCRATES, O JOVEM — O que dizes se confirma perfeitamente pelo que antes afirmaste ; mas, dize-me agora se a vida que, a teu ver, existia sob o império de Crono, pertencia ao outro ciclo ou a este, pois que a mudança de sentido no curso dos astros e do sol aconteceu, evidentemente, em ambos.

ESTRANGEIRO — Acompanhaste bem a discussão. Mas a ordem a que tu te referes, em que tudo nascia de si mesmo para servir aos homens, não tem relação alguma com o ciclo ora em curso: pertencia ela ao ciclo precedente. Nesse tempo, a direção e a vigilância de Deus se exercia, primeiramente, tal como hoje, sobre todo o movimento circular, e essa mesma vigilância ainda existia localmente, pois todas as partes do mundo estavam distribuídas entre os deuses encarregados de governá-las. Aliás, os próprios animais então se dividiam em gêneros e rebanhos sob o bordão de gênios divinos e cada um deles provia, plenamente, todas as necessidades de suas ovelhas não havendo feras selvagens, nem acontecendo que uns devorassem a outros, nem guerras, sem desentendimentos; e eu poderia contar, ainda, milhares de outros benefícios a esse tempo dispensados ao mundo. Mas, voltando ao que se refere aos homens que, então, não tinham preocupação alguma para viver, esta é a explicação: era o próprio Deus que pastoreava os homens e os dirigia tal como hoje, os homens (a raça mais divina) pastoreiam as outras raças animais que lhes são inferiores. Sob o seu governo, não havia Estado, constituição, nem a posse de mulheres e crianças, pois era do seio da terra que todos nasciam, sem nenhuma lembrança de suas existências anteriores. Em compensação tinham em quantidade os frutos das árvores e de toda uma vegetação generosa, recebendo-os, sem cultivá-los, de uma terra que, por si mesma os oferecia. Nus, sem leito, viviam no mais das vezes ao ar livre, pois as estações lhes eram tão amenas que nada podiam sofrer, e por leitos tinham a relva macia que brotava da terra. Era esta, Sócrates, a vida que se levava sob o império de Crono; e quanto à outra, a de agora, e que, ao que se diz, está sob o império de Zeus, tu a conheces por ti mesmo. Podes dizer qual delas é a mais feliz?

SÓCRATES, O JOVEM — Impossível.

ESTRANGEIRO — Queres, então, que eu mesmo o diga?

SÓCRATES, O JOVEM — Claro que sim.

ESTRANGEIRO — Se os tutelados de Crono, em seus lazeres que eram muitos, e tendo a faculdade de entreter-se, não apenas com homens, mas também com animais, se usaram de todas essas vantagens para praticar a filosofia, conversando com os animais e entre si, e interrogando a todas as criaturas para ver se haveria uma que, melhor dotada, enriquecesse, com uma descoberta original, o tesouro comum dos conhecimentos humanos, fácil seria dizer que eles eram infinitamente mais felizes do que os homens do presente. Se, porém, apenas se ocuparam em fartar-se de alimentos e bebidas, não procurando contar ou ouvir de outros e dos animais senão fábulas, tais como as que hoje se contam a seu respeito, a resposta seria fácil, creio. Mas, deixemos este problema até que encontremos alguém, bastante hábil, que nos testemunhe com que espírito os homens deste tempo procuravam o conhecimento e entre si discutiam. Quanto à razão por que lembramos este mito, eu a direi agora, pois já é tempo de continuarmos o nosso raciocínio se quisermos levá-lo a bom termo.