POL 293e-297b: Legitimidade do governo sem leis

ESTRANGEIRO — Tua observação, Sócrates, antecipa uma pergunta que eu pretendia fazer: aceitas todas essas reflexões, ou há alguma que te desagrada? Eis, entretanto, o que está claro: a questão que queremos discutir é a de saber se é legítimo um governo sem leis.

SÓCRATES, O JOVEM — Evidentemente.

ESTRANGEIRO — Ora, é claro que, de certo modo, a legislação é função real; entretanto o mais importante não é dar força às leis, mas ao homem real, dotado de prudência. Sabes por quê?

SÓCRATES, O JOVEM — Qual é a tua explicação?

ESTRANGEIRO — É que a lei jamais seria capaz de estabelecer, ao mesmo tempo, o melhor e o mais justo para todos, de modo a ordenar as prescrições mais convenientes. A diversidade que há entre os homens e as ações, e por assim dizer, a permanente instabilidade das coisas humanas, não admite em nenhuma arte, e em assunto algum, um absoluto que valha para todos os casos e para todos os tempos. Creio que estamos de acordo sobre esse ponto.

SÓCRATES, O JOVEM — Sem dúvida.

ESTRANGEIRO — Ora, em suma, é precisamente este absoluto que a lei procura, semelhante a um homem obstinado e ignorante que não permite que ninguém faça alguma coisa contra sua ordem, e não admite pergunta alguma, mesmo em presença de uma situação nova que as suas próprias prescrições não haviam previsto, e para a qual este ou aquele caso seria melhor.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade: a lei age sobre cada um de nós, exatamente como acabas de dizer.

ESTRANGEIRO — E não é, porventura, impossível, ao que permanece sempre absoluto, adaptar-se ao que nunca é absoluto?

SÓCRATES, O JOVEM — Assim parece.

ESTRANGEIRO — Por que, pois, é necessário fazer as leis se elas não são a regra perfeita? É necessário investigar por quê?

SÓCRATES, O JOVEM — Naturalmente.

ESTRANGEIRO — Não há entre vós, assim como nas outras cidades, constituições onde os homens praticam a corrida, ou outras provas, por simples espírito de emulação?

SÓCRATES, O JOVEM — Certamente, e muitas espécies.

ESTRANGEIRO — Lembremo-nos então das máximas que prescrevem, ao dirigir essas competições, os treinadores que as conduzem de acordo com regras cientificas.

SÓCRATES, O JOVEM — Que máximas?

ESTRANGEIRO — A eles, não parece necessário considerar os pormenores dos casos individuais, formulando, para cada pessoa, prescrições especiais; ao contrário, acreditam que é necessário ver as coisas de um modo geral, estabelecendo, para a maioria dos casos e das pessoas, preceitos que sejam úteis para o corpo em geral.

SÓCRATES, O JOVEM — Muito bem!

ESTRANGEIRO — Essa é a razão por que, na realidade, impõem a um grupo de pessoas as mesmas fadigas, iniciando e parando ao mesmo tempo a corrida, a luta ou qualquer outro exercício corporal.

SÓCRATES, O JOVEM — É verdade.

ESTRANGEIRO — Acontece o mesmo com o legislador: tendo que prescrever a suas ovelhas obrigações de justiça e contratos recíprocos, jamais seria capaz, promulgando decretos gerais, de aplicar, a cada indivíduo, a regra exata que lhe convém.

SÓCRATES, O JOVEM — Provavelmente.

ESTRANGEIRO — Estabeleceria, antes, o que conviesse à maioria dos casos e dos indivíduos, e assim de modo geral, legislaria para cada um, por meio de leis escritas ou não, contentando-se, neste caso, em dar força de lei aos costumes nacionais.

SÓCRATES, O JOVEM — Tens razão.

ESTRANGEIRO — Sem dúvida, como poderia alguém, Sócrates, a cada momento aproximar-se de cada indivíduo a fim de prescrever exatamente o que ele deve fazer? A meu ver, é claro que no dia em que um ou outro fosse capaz de assim fazer, dentre aqueles que verdadeiramente possuem a ciência real, ele não se restringiria mais ao trabalho de escrever essas pretensas leis.

SÓCRATES, O JOVEM — Certamente, Estrangeiro, pelo menos, de acordo com o que acabamos de dizer.

ESTRANGEIRO — E ainda mais certamente, meu bom amigo, de acordo com o que vamos dizer.

SÓCRATES, O JOVEM — O quê?

ESTRANGEIRO — O seguinte: suponhamos que um médico ou professor de ginástica queira empreender uma viagem que o reterá por muito tempo afastado de seus alunos ou clientes. Persuadido de que estes não se lembrariam de suas prescrições, gostaria de deixar-lhes instruções escritas, não é certo?

SÓCRATES, O JOVEM — Sim.

ESTRANGEIRO — E então? Voltando antes do tempo, após ausência mais curta do que imaginara, não teria ele, porventura, coragem de substituir essas ordens escritas por outras novas, que no caso favoreceriam os enfermos, dado o estado dos ventos ou a intervenção imprevista de Zeus? Ou iria, ao contrário, obstinar-se, julgando que as velhas prescrições, uma vez feitas, são invioláveis, nada lhe cabendo ordenar de novo, nem ao seu doente, nada fazer fora das fórmulas escritas que são as únicas medicinais e salutares, enquanto as outras prescrições são maléficas. E toda conduta semelhante, em matéria de ciência e de arte verdadeira, não atrairia, em qualquer circunstância, o mais profundo ridículo sobre tal maneira de legislar?

SÓCRATES, O JOVEM — Sem dúvida alguma.

ESTRANGEIRO — Mas quando essas leis, escritas ou não, editadas para um ou outro desses rebanhos humanos que, repartidos em cidades, aí vivem sob as leis de seus respectivos legisladores, se referem ao que é justo ou injusto, e o legislador competente ou outro que lhe seja igual, volta atrás, deve-se interditá-lo de modificar essas primeiras prescrições? Tal interdição não seria, nesse caso, pelo menos tão ridícula quanto a primeira?

SÓCRATES, O JOVEM — Certamente.

ESTRANGEIRO — Sabes o que diz, a esse respeito, a maioria das pessoas?

SÓCRATES, O JOVEM — Não me recordo.

ESTRANGEIRO — E interessante. Dizem, com efeito, que se alguém conhece leis melhores que as existentes não tem o direito de dá-las à sua própria cidade senão com o consentimento de cada cidadão; de outro modo não.

SÓCRATES, O JOVEM — Muito bem! Não estarão eles certos?

ESTRANGEIRO — Talvez. Em todo caso, se alguém dispensa esse consentimento e impõe a reforma pela força, que nome se dará a esse golpe? Mas, espera. Voltemos primeiro aos exemplos precedentes.

SÓCRATES, O JOVEM — Que queres dizer?

ESTRANGEIRO — Suponhamos um médico que não procura persuadir seu doente e, senhor de sua arte, impõe a uma criança, a um homem ou uma mulher o que julga melhor, não importando os preceitos escritos. Que nome se dará a essa violência? Seria por acaso o de violação da arte e erro pernicioso? E a vítima dessa coerção não teria o direito de dizer tudo, menos que foi objeto de manobras perniciosas e ineptas por parte de médicos que as impuseram?

SÓCRATES, O JOVEM — Dizes a pura verdade.

ESTRANGEIRO — Ora, como chamaríamos àquele que peca contra a arte política? Não o qualificaríamos de odioso, mau e injusto?

SÓCRATES, O JOVEM — Exatamente.

ESTRANGEIRO — Se se quiser censurar a violência dos que foram obrigados a transgredir a lei escrita ou costumeira para agir de um modo mais justo, útil e belo, evitando-se a censura ridícula, não se excluirá, de todas as afrontas possíveis que se apontem, a acusação de um tratamento odioso, injusto e mau infligido às vítimas dos autores dessa violência?

SÓCRATES, O JOVEM — É a pura verdade.

ESTRANGEIRO — Será a violência justa, por ser rico o seu autor, e injusta, por ser ele pobre? Ou seria melhor dizer que o chefe pode ou não lançar mão da persuasão, ser rico ou pobre, ater-se às leis escritas ou livrar-se delas, desde que governe utilmente? Não é nisto que reside a verdadeira fórmula de uma administração correta da cidade, segundo a qual o homem sábio e bom administrará os interesses de seu povo? Da mesma forma como o piloto, longe de escrever um código, mas tendo sempre sua atenção voltada para o bem do navio e seus marinheiros, estabelece a sua ciência como lei e salva tudo o que com ele navega, assim também, de igual modo, os chefes capazes de praticar esse método realizarão a constituição verdadeira, fazendo de sua arte uma força mais poderosa do que as leis. E não será verdade que os chefes sensatos podem fazer tudo, sem risco de erro, desde que observem esta única e grande regra: distribuir em todas as ocasiões, entre todos os cidadãos, uma justiça perfeita, penetrada de razão e ciência, conseguindo não somente preservá-la, mas também, na medida do possível, torná-la melhor?