Político (Bréhier)

Sobre as condições do governante.


O MITO DO POLÍTICO
Excertos da tradução de História da Filosofia, de Émile Bréhier, por Eduardo Sucupira FIlho

O constante perigo de decadência que ameaça as cidades é o meio indireto de provar a necessidade do governo de filósofos, capazes de deter a sua queda. A visão social pessimista, que se origina dessa espécie de lei de degradação das cidades, não é contrabalançada, em Platão, pela crença de que a técnica política pode realizar algum progresso em sentido inverso. Não é equilibrada senão por uma crença não racional, mas inteiramente viva, em relação à forma cíclica do devenir. O devenir, retroagindo sobre si mesmo, conduz ao estado primitivo. Mas, a essa crença, Platão não deu qualquer forma filosófica e científica, como a que deu à descrição do fato, diretamente comprovado, da decadência dos governantes. Empresta-lhe a forma de mito, que expõe no Político, destinado, sem dúvida, a melhor evidenciar o sítio exato e delimitado da arte política em uma evolução, cujo conjunto escapa plenamente aos critérios da arte racional. Platão imagina,, com efeito/que na idade feliz de Cronos, o sol e os astros caminhavam em sentido inverso ao do atual, e que todo o desenvolvimento dos seres ocorria, igualmente, em sentido inverso, isto é, que ia da morte ao renascimento, em lugar de ir do nascimento à morte. Isso significava que a terra produzia, espontaneamente e sem o trabalho humano, todos os frutos úteis ao homem; e, em geral, que cada ser chegava, sem esforço, a seu ponto de perfeição. Como não havia nenhum trabalho técnico, não era necessária qualquer união política. Mas, quando o sol modifica o sentido de seu curso, e simultaneamente, os seres, lenta e dificilmente, em meio a obstáculos de toda sorte, alcançam sua maturidade, é então que se fazem necessárias as técnicas de toda classe, principalmente a técnica social. A maior parte das artes são dons que os deuses propiciam aos homens para ampará-los em suas dificuldades (268 e – 275 b).

Eis porque a arte social assume, no Político, fisionomia tão peculiar e inovadora; toda arte humana manipula coisas mutantes, diversas, e, desde logo, procede menos por meio de regras gerais do que por recursos que se adaptem às circunstâncias. Acontece o mesmo com a arte política; “as dessemelhanças entre os homens e suas ações, a completa ausência de imobilidade nos assuntos humanos opõem-se a toda regra simples que sirva para todos os casos e todos os tempos” (294 b), tanto em matéria de arte política como nas demais artes. Disso se conclui que o homem de Estado, o técnico político, é uma lei viva e soberano absoluto da cidade, como o pastor o é de seu rebanho. Platão chega, assim, a dar ao político um caráter providencial e sobre-humano, como germes longínquos da teoria do poder no império romano e no papado. Aqui, menos ainda, se vislumbra qualquer esperança, baseada na razão, de progresso natural, e o mito substituirá, regularmente, o conhecimento em todos os casos em que se trate de retornar a um estado superior ao nosso (293-300).