“Seria ridículo buscar circunscrever essa natureza imensa; quem o tenta fazer ajusta a si mesmo de aproximar-se de algum modo e minimamente de um vestígio dele; mas, assim como aquele que quer ver a natureza inteligível há de contemplar o que está além do sensível se não retiver nenhuma representação do sensível, assim também aquele que deseja contemplar o que está além do intelecto há de contemplá-lo após abandonar todo o inteligível, sabendo através do inteligível que aquele existe, mas renunciando saber como ele é. Mas o ‘como’ indica como não é: pois para o uno não há nem mesmo o ‘como’, para ele não há tampouco o ‘que’. Mas nós, com «ossos espasmos de parturiente, ficamos perplexos sobre o que devemos dizer, e falamos sobre o não dizível e o nomeamos desejando indicá-lo, como podemos, para nós mesmos. ” (V. 5 [32] 6.14-25)
Para a crítica moderna, o que define Plotino como um “neoplatônico”, diferenciando-o dos “platônicos” e “mesoplatônicos” de modo geral, é a concepção de um princípio radicalmente transcendente [Vejam-se Meijer, 1992, pp. 1-19; e Narbonne, 2001, pp. 21-70]. Sendo ele, como parece, o primeiro a refletir sobre um tal princípio, é natural que tenha sido também o primeiro perceber as implicações profundas dessa reflexão e a dificuldade de exprimi-la discursivamente. Por esse motivo, Plotino é tido como o fundador da teologia negativa, ou discurso apofátíco [Sells, 1994, p. 5]. Antes, portanto, de tentarmos caracterizar esse primeiro princípio que, para Plotino, indubitavelmente existe, devemos saber o que e como nos é permitido falar sobre ele.
Ele é o princípio de todas as coisas, anterior a todas elas e absolutamente simples, fato que o faz estar além de toda determinação e de toda compreensão racional [VI 9 [9] 4.1-16]. Como enfatiza Plotino, ele está “além do ente e do intelecto” [Frase retirada de Platão, República 509 b 9; em Plotino, veja-se, por exemplo: 1.8 [51] 2. 8,3.13, 6. 28; III. 8 [30] 9. 2, 9. 9; V. 3 [49] 12. 47ss., 13. 2ss.; V. 4 [7] 2. 39; VI. 8 [39] 19. 13. Sobre desenvolvimento histórico dessa noção, de Platão a Proclo, veja-se Beierwaltes (1995, p. 121 n. 127 e pp. 243-244)]. Se ele não é nenhum de seus produtos, se não é ente nem intelecto nem vida, isso não significa que nada seja, mas que simplesmente está além de tudo. Sua absoluta simplicidade não aceita predicação, pois assim se tornaria composto e seria destruído; não podemos dizer nem mesmo que ele “é”, pois isso já o faria duas coisas. A predicação é impedida também pela infinitude do uno, que não pode ser contida ou delimitada por um atributo. Precisamos abstrair do uno o ser e todas as outras determinações implicadas por ele [III. 8 [30] 10. 28-31; V. 3 [49] 17.38; VI 7 [38] 35. 7; VI. 8 [39] 8. 9-10; 8.14; 11. 34-35; 15. 22-23; 21. 25-28; VL 9 [9] 9. 51-52].
Toda reflexão sobre esse primeiro princípio impõe, portanto, uma reflexão sobre o limite da razão e da linguagem. Não se trata, contudo, de uma hostilidade à razão, mas sim de um reconhecimento, ele mesmo resultado de reflexão rigorosa, da insuficiência do pensamento racional e da linguagem para conceber e exprimir o que é absolutamente simples e transcendente. A visão mais próxima que podemos ter do uno é através da intelecção (nóesis), uma intuição intelectual e imediata, não proposicional, autoevidente, imutável, que superior à diánoia [V. 3 [49] 13. 21-24; V. 5 [32] 1-2; V. 8 [31] 5. 20-22; VI. 9 [9] 5. 12-13], a racionalidade discursiva própria da alma. A intelecção, embora possa ser reduzida a uma unidade existencial, não é unidade total, pois permanece dualidade conceituai, uma vez que em toda intelecção há um sujeito inteligente e um objeto inteligido [III. 8 [30] 9.1-11]. Mas o uno está além disso, além dessa apreensão dual do intelecto. A intelecção pode reconhecer a existência de algo anterior a ela que seja seu princípio, mas a descrição desse reconhecimento estará no âmbito discursivo. Se mesmo a intelecção não tem, enquanto intelecção, acesso ao uno – porque é necessariamente composta de um sujeito e de um objeto de intelecção, mesmo que se trate da autointelecção do intelecto –, menos ainda terá o pensamento discursivo, que é proposicional e necessariamente procede por análise e inferência [V. 3 [49] 2-3, 7-9].
O princípio é verdadeiramente inefável e nada que digamos sobre ele pode revelá-lo, “nós apenas lançamos sinais (semaínein) a seu respeito para nós mesmos” [V. 3 [49] 13. 5-6]. Entretanto, se não podemos ter conhecimento intelectual imediato do uno, é-nos possível e legítimo vislumbrar algo de sua natureza através das coisas que dele procedem: “pois dizemos aquilo que ele não é; aquilo que ele é, não o dizemos: nós falamos sobre ele a partir das coisas que vêm depois dele” [V. 3 [49] 14.4-8; cf. VI. 9 [9] 3.49-54]; além do conhecimento das coisas derivadas dele, as analogias e abstrações também podem nos ensinar algo sobre ele [VI 7 [38] 36.6-10].
Essas observações nos permitem retirar três conclusões fundamentais [Cf. Bussanich, 1988, pp. 93-94]: (i) todas as afirmações sobre o primeiro princípio, mesmo que ele é o “bem”, o “uno” ou simplesmente “é”, são inadequadas, pois o colocam como um objeto, um “algo”; (ii) toda predicação acerca dele é, em última análise, referente a nós, uma vez que tudo que lhe atribuímos são sinais para nós mesmos, que funcionam como artifícios hermenêuticos, a fim de articularmos nossa própria experiência da presença dele em nós – por exemplo, quando dizemos que ele é “causa de todas as coisas”, não afirmamos que ele é causa, mas sim que nós somos causados; (iii) rigorosamente empregadas, a negação (apóphasis) e a abstração (aphaíresis) têm como propósito determinar o que ele não é, jã que não podemos dizer o que ele é. [BARACAT]