psyche (Gazolla)

2. O que é a alma, para Platão? Na tentativa de responder a essa primeira interrogação, procuramos apresentar as definições platônicas conforme alguns diálogos maduros que melhor a explicam, sem obedecer à sua possível ordem cronológica: Fédon, Fedro, Leis e Timeu. Somente neste último, Platão aprofunda a noção de alma, em sua gênese, em suas potências, em suas relações com o corpo, após tê-la afirmado como princípio da vida e causa primeira do movimento. Se em muitos diálogos não citados ela é referida, o filósofo não o faz, todavia, com tal cuidado e significações como nesse relato mítico, que é o Timeu. Dizem alguns intérpretes, como Charles Mugler e Gregory Vlastos, que o Timeu apresenta uma teoria astronômica específica do autor que, através dela, critica outras existentes. É possível que sim, mas o peso maior do Timeu não é esse, nem o são as hipocráticas de conhecimento do filósofo e expostas no relato. Platão articula, nesse texto, seus princípios metafísicos, também presentes no Fédon, no Fedro, nas Leis e em todos os diálogos, mesmo quando somente anunciados. E, se a primeira parte de nosso escrito privilegia o Timeu para responder o que é a alma, isto se justifica porque é um diálogo sobre os seres principais, fundamento de todos os seres, da alma inclusive, e desta como um ser intermediário, principal com relação aos seres gerados na ordem e medida. Os três princípios do Timeu — o ser que sempre é, o ser que sempre deve e a chora — eis o que para nós, seres duplos (corpo e alma), uma vez explicitados, funda nosso conhecimento no mais amplo sentido.

Na primeira parte, concluímos que a alma, além de princípio da vida, causa do movimento e ordenação, é uma ousía segunda, com referência à totalidade das ousia. Ela é realidade misturada quanto à sua gênese. Miticamente implantada nos seres de natureza diversa da sua (os corpos), necessariamente é afetada e manifesta dynameis, o que justifica a abertura de uma segunda parte específica sobre essas dynameis.

O fato de termos esclarecido, na medida do possível, os princípios platônicos expostos no Timeu, principalmente nas mútuas relações que o segundo princípio e a “chora” mantêm, bem como as implicações desses princípios no que diz respeito à matéria como lugar do Mal, auxilia-nos na abertura de uma segunda parte. Já de posse da noção de alma e de seu caráter composto, a escolha da república não é arbitrária. Qual é a melhor forma de os homens viverem em comunidade, ao levar-se em conta a composição de suas almas e o modo como eles podem e devem expressá-las como seres duplos que são?

O diálogo A República é de extrema riqueza temática e reflexiva. Da alma cósmica à alma da cidade: eis uma passagem que só pode ser feita com a reflexão sobre o homem e sua individualidade. Obedecendo ao próprio movimento desse texto platônico e ao nascimento das noções que se entrelaçam com as partes da alma (desejante, timocrática e logística) — como a imitação, a técnica, a própria dialética privilegiada nos livros VI, VII e VIII — foram estruturados os capítulos e subtítulos que compõem a segunda parte. Muito mais, portanto, em função da dificuldade de uma noção diante de outra no desenvolvimento do texto, e muito menos como um método de antemão claro a que nos propusemos a seguir.

O final da segunda parte levou-nos à difícil noção de noûs e ao filósofo-dialético. Mas uma das dynámeis da alma exige maior cuidado: a logística, onde se aloja o noûs, pois através de seu bom uso os homens podem ser felizes. A terceira parte, portanto, busca o Platão que sempre soubemos estar presente, até nos momentos de cunho mais puramente “gnoseológico”: o filósofo preocupado em transformar o homem e sua época, o filósofo civilizador que, fundado numa teoria da alma tripartida, pôde apontar os difíceis caminhos da phronesis, aceitando o excesso de relativização que as coisas têm — e que a Sofistica cuidou de resgatar — e refletindo, por isso mesmo, no melhor modo de contornar os limites humanos. Platão aponta para a ideia de medida (metron) como solo reflexivo da possibilidade de uma limitada aproximação do devir humano com a permanência.

Da definição da alma, ao modo como o homem tenta exprimi-la no seu mundo (que, segundo o discípulo Aristóteles, está sujeito a todas as relatividades que a geração e a corrupção carregam), nesse mundo “sublunar” tão distante do divino — pois o Acaso nele irrompe a qualquer momento — o Platão maduro, talvez mais afastado das consequências que a sentença dada pela cidade democrática ao seu mestre Sócrates nele provocou, pôde refletir sobre as carências humanas com maior agudeza. Quando o faz na maturidade, a alma emerge como noção nuclear, o que antes, nos diálogos de juventude, não acontecera.

Este estudo, apesar de centralizado no tema psyche, viu-se obrigado a ampliar seu campo de noções, ficando-nos a impressão de que toda a filosofia platônica remete-se, em última instância, à alma, como não poderia deixar de ser, pois a própria filosofia não é expressão da alma como princípio da vida, do movimento, da ordem e harmonia? E pode haver filosofia “sem alma”?