Pythagoras

Pitágoras nasceu em Samos, ilha da costa jônica, cerca de 570 a.C, e é sem dúvida por motivos ético-religiosos e políticos que se exilou por volta de 530, numa idade mais madura que Xenófanes: o “tirano” Poliorates lançava Samos na conquista brutal da prosperidade e do luxo, indo de encontro assim às velhas tradições de misticismo e de ascetismo bem como ao amor intelectual à ordem e à medida, que marcaram, como se pode supor, a personalidade de Pitágoras (não sem analogia com a de Xenófanes). Pitágoras se instalou em Crótona, no sul da Itália, onde obteve uma influência dominante graças à confraria que aí fundou; a maioria das cidades da Grande Grécia tinha que encontrar um equilíbrio entre forças sociais violentamente opostas e os pitagóricos ajudaram-nas eficazmente elaborando constituições. É verdade que seu “puritanismo” conservador e seu autoritarismo de minorias inspiradas provocaram várias revoluções, o que deslocou o centro de gravidade do movimento, não sem enfraquecê-lo, da Itália para a Grécia continental. O próprio Pitágoras, banido de Crótona, teria morrido no sul da Itália, em Metaponto, cerca de 490 a.C.

No centro do pitagorismo juntam-se a convicção da imortalidade da alma, a aspiração da salvação e, para obtê-la, a prescrição de um modo de vida determinado, comportando uma purificação pela contemplação intelectual (theoria, phylosophia). A inspiração religiosa de Pitágoras se afasta tanto do otimismo prosaico dos milesianos quanto da piedade aristocrática dos poemas homéricos, um e outro dotados de um sólido amor à vida perecível e de nenhum modo inclinados a sonhar com uma imortalidade bem-aventurada; ela é próxima, ao contrário, do que certamente cumpre considerar como crenças do “povinho” a viver sob duras condições, crenças que as aristocracias mais tarde suplantadas teriam retomado, refinando-as mais ou menos. A vida terrestre surge então como um templo de provação: há que se esforçar por “se assemelhar ao divino” a fim de escapar à “ronda de nascimentos” que traz de volta à Terra em encarnações diversas os que ainda não se revelaram bastante puros para uma eternidade de bemaventurança supra-terrestre. Convém, pois, cultivar neste mundo a moderação, a ordem, a doçura. Política, religião, medicina e música têm igualmente que suprimir os conflitos e as violências; um traço de união capital aparece entre a terapêutica sagrada da lira de Orfeu e a definição numérica da justa medida que reconcilia as facções na cidade, quando Pitágoras descobre que os números comandam também a música e que os acordes musicais correspondem a proporções simples. A noção de harmonia se estende a partir daí ao cosmos inteiro, numa religião aritmológica que retoma também, certamente, velhas tradições de magia dos números ao mesmo tempo que tira talvez algum ensinamento da experiência da moeda (como organização quantitativa da diversidade qualitativa das mercadorias).

A tetraktys, soma dos quatro primeiros números inteiros, é seu símbolo sagrado: ela basta para definir os acordes de oitava, de quinta e de quarta, os quatro números são associados respectivamente ao ponto, à linha, à superfície e ao volume assim como às distâncias da Terra à Lua, ao Sol e aos astros fixos etc. Toda realidade é, pois, constituída, em sua perfeição, como que musical, por números; os números, como conjunto de pontos, deixam-se dispor em figuras e, sobretudo, as realidades em geral consistem em misturas dosadas com precisão, segundo uma regra definindo em cada caso a essência. A justa proporção, a harmonia, une e concilia pacificamente os componentes que, abandonados a si próprios, se opunham violentamente. Mas o ponto capital é a existência de duas espécies de polaridades bem distintas: o mais e o menos, o agudo e o grave etc, são pares de opostos harmonizáveis e sem conflito, ou, antes, sua instável desordem apenas se manifesta se a medida não lhes é imposta; eles formam, pois, juntos, numa oposição desta vez fundamental, um só termo, o indeterminado, o apeiron, submetido à determinação benéfica e pacificadora de um termo superior, o limite. O pitagorismo é nesse sentido francamente dualista: é a partir da fixação do indeterminado pelo limite que são constituídos o cosmos e tudo o que ele abarca e, em primeiro lugar, os próprios números como distintos de suas aplicações múltiplas. O limite, ou unidade suprema que instaura uma universal afinidade entre as coisas, imóvel alma do mundo, que rege sua ordem e sua beleza, é o próprio Deus, o Deus ao qual as almas puras aspiram reunir-se, a fim de realizar seu destino.

Esta concepção, a despeito de seus princípios aritmológicos e musicais (com a célebre música das esferas celestes), permanece consideravelmente tributária da cosmologia milesiana; indiquemos simplesmente que ao parafraseá-la, ela a modifica e amplifica e que, certamente, nela o cosmos é imperecível. A originalidade do pitagorismo resulta evidentemente muito mais do seu ideal de precisão que diviniza o limite e das especulações matemáticas que nos fazem semelhantes a Deus. Certamente corre-se o risco de superestimar a importância do pitagorismo antigo no desenvolvimento das matemáticas se não se leva em conta, por exemplo, que o enunciado do teorema “de Pitágoras” era conhecido dos babilônios do II milênio e sobretudo o fato de Pitágoras ter passado a metade de sua vida no meio jónico, onde as matemáticas aplicadas faziam sensíveis progressos. Contudo, a investigação de propriedades notáveis dos números foi indubitavelmente estimulada por sua promoção religiosa à dignidade de realidades particularmente interessantes em si mesmas e o sentimento profundo de sua unidade genética não pode senão fazer progredir, e provavelmente de maneira decisiva, o sentido da demonstração. A título de exemplo, engendra-se a sequência dos quadrados pelo método do esquadro ou gnomon: em linhas de pontos formando ângulo reto, ajunta-se à unidade os ímpares sucessivos, o que demonstra geometricamente que n2 + (2n + 1) = (n + 1)². O descontinuismo pitagórico se chocou, nos meados do século V, com a descoberta do primeiro “irracional”, raiz de 2 (incomensurabilidade da diagonal do quadrado com o lado), e disso resultou talvez uma cisão ou pelo menos a afirmação de divergências entre os “fiéis” (acusmáticos) e os “sábios” (matemáticos), os primeiros ligados aos ritos, os segundos desejosos de conservar o intelectualismo da confraria, e, consequentemente, mais inclinados a renovar. O movimento dá testemunho, aliás, de uma grande flexibilidade de adaptação e de evolução, em função tanto dos deuses da religião oficial quanto das filosofias novas, e pode-se julgar com grande plausibilidade que desde as origens, apesar de seus acessos de sectarismo político, a pequena célula formada pelos “iguais” admitia sempre à sua volta um grande círculo de simpatizantes.

Entre estes encontrou lugar um notável médico filósofo de Crótona, Alcmeon, que reconhecia o cérebro como sede do pensamento, concebia a alma como movimento circular e a aproximava, em consequência, dos astros, e definia a saúde em termos de política pitagórica pela isonomia, ou igualdade constitucional dos componentes do organismo. Explica-se assim a imensa influência do pensamento pitagórico, aliás conciliador e sintético na própria fonte, se é verdade que o gênio próprio de Pitágoras consistiu, colocando em forma expressa uma tendência importante da religiosidade do tempo, em veicular a sede de imortalidade dos cultos agrários na medida e clareza de Apolo, deus das formas nítidas e das regras bem determinadas. [J. Bernhardt]


Pitágoras nasceu em Samos, vivendo o apogeu de sua vida em torno de 530 a.C. e morrendo no início do século V a.C. O mais conhecido dos antigos biógrafos dos filósofos, Diógenes Laércio, assim resume as etapas de sua vida: “Jovem e ávido de ciência, abandonou sua pátria e foi iniciado em todos os ritos mistéricos, tanto gregos como bárbaros. Depois, foi para o Egito (…); depois, esteve entre os caldeus e magos. Posteriormente, em Creta, com Epimênides, entrou no antro de Ida, mas também no Egito entrou nos santuários e aprendeu os arcanos da teologia egípcia. Então, retornou a Samos e, encontrando sua pátria sob a tirania de Policrates, levantou velas para Crotona, na Itália. Ali, elaborou leis para os italiotas e conseguiu grande fama, juntamente com seus seguidores, que em número de cerca de trezentos, administravam tão bem á coisa pública que seu governo foi quase uma aristocracia.” Talvez as viagens ao Oriente tenham sido uma invenção posterior. Mas é certo que Crotona foi a cidade em que Pitágoras operou principalmente. Mas as doutrinas pitagóricas também tiveram muita difusão em inúmeras outras cidades da Itália meridional e da Sicília: de Síbari a Régio, de Locri a Metaponto, de Agrigento a Catania. Além de filosófica e religiosa, como vimos, a influência dos pitagóricos também foi notável no campo político. O ideal político pitagórico era uma forma de aristocracia baseada nas novas camadas dedicadas especialmente ao comércio, que, como já dissemos, haviam alcançado um elevado nível nas colônias, antes ainda do que na mãe-pátria. Conta-se que os crotonienses, temendo que Pitágoras quisesse tornar-se tirano da cidade, incendiaram o prédio em que ele se havia reunido com seus discípulos. Segundo algumas fontes, Pitágoras teria morrido nessas circunstâncias; segundo outros, porém, teria conseguido fugir, vindo a morrer em Metaponto. Muitos escritos são atribuídos a Pitágoras, mas os que chegaram até nós sob o seu nome são falsificações de épocas posteriores. E possível que o seu ensinamento tenha sido somente (ou predominantemente) oral.

Podemos dizer muito pouco, senão pouquíssimo, sobre o pensamento original desse pensador, bem como sobre os dados reais de sua vida. As numerosas Vidas de Pitágoras posteriores não têm credibilidade histórica, porque logo depois de sua morte (e talvez já nos últimos anos de sua vida) o nosso filósofo já havia perdido os traços humanos aos olhos de seus seguidores: ele era venerado quase como um nume e sua palavra tinha quase o valor de oráculo. A expressão com que se referiam à sua doutrina tornou-se muito famosa: “ele o disse” (autos épha; ipse dixit). Aristóteles não tinha mais à disposição elementos que lhe permitissem distinguir Pitágoras dos seus discípulos. Assim, falava dos “chamados pitagóricos”, ou seja, os filósofos “que eram chamados” ou “que se chamavam” pitagóricos, filósofos que procuravam juntos a verdade e que, portanto, não se diferenciavam singularmente.

Mas, por mais que possa parecer estranho, esse fato não é anômalo, se levarmos em conta algumas características peculiares dessa escola: 1) A escola nasceu como uma espécie de fraternidade ou ordem religiosa, organizada com base em regras precisas de convivência e de comportamento. O seu fim era a concretização de um determinado tipo de vida, para o qual a ciência e a doutrina constituíam um meio: esse meio era um bem comum, que todos alcançavam e que todos procuravam desenvolver. 2) As doutrinas eram consideradas como um segredo, do qual só os adeptos podiam tomar conhecimento e cuja difusão era severamente proibida. 3) O primeiro pitagórico a publicar alguma obra foi Filolau, um contemporâneo de Sócrates. Relata uma fonte antiga: “E de maravilhar o rigor do segredo dos pitagóricos. Com efeito, ao longo de tantos anos, parece que ninguém deparou qualquer escrito dos pitagóricos antes do tempo de Filolau. Encontrando-se em grande e dura pobreza, foi este o primeiro a divulgar aqueles celebrados três livros, que se diz teriam sido comprados por Dion de Siracusa a mando de Platão.” 4) Consequentemente, entre fins do século VI a.C. e fins do século V até início do século IV a.C., o pitagorismo pôde enriquecer notavelmente o seu patrimônio doutrinário sem que possamos ter elementos seguros para realizar distinções precisas entre as doutrinas originárias e as posteriores. 5) Entretanto, como as bases sobre as quais o pitagorismo trabalhou eram substancialmente homogêneas, é lícito considerar essa escola em bloco, precisamente como os antigos já faziam, a começar por Aristóteles. [Reale]


Pitágoras foi um homem de gênio, porque é o primeiro filósofo grego a quem ocorre a ideia de que o princípio donde tudo o mais se deriva, aquilo que existe de verdade, o verdadeiro ser, o ser em si, não é nenhuma coisa; ou, melhor dito, é uma coisa; porém, que não se vê, nem se ouve, nem se toca, nem se cheira, que não é acessível aos sentidos. Essa coisa é “número”. Para Pitágoras a essência última de todo ser, dos que percebemos pelos sentidos, é o número. As coisas são números, escondem dentro de si números. As coisas são distintas umas de outras pela diferença quantitativa e numérica. Pitágoras era um aficionado da música, e foi quem descobriu (ele ou algum dos seus numerosos discípulos) que na lira se as notas das diferentes cordas soam diferentemente, é porque umas são mais curtas que as outras e não somente descobriu isso, mas também mediu o comprimento relativo e encontrou que as notas da lira estavam entre si numa simples relação numérica de comprimento: na relação de um dividido por dois, um dividido por três, um dividido por quatro, um dividido por cinco. Descobriu pois, a oitava, a quinta, a quarta, a sétima musical, e isto o levou a pensar e o conduziu à ideia de que tudo quanto vemos e tocamos, as coisas tais e como se apresentam, não existem de verdade, mas antes são outros tantos véus que ocultam a verdadeira e autêntica realidade, a existência real que está atrás dela e que é o número. Seria complexo (e nem pertenceria ao tema, nem à oportunidade) demonstrar minuciosamente esta teoria de Pitágoras. Interessa-me tão-somente fazê-la notar, porque é a primeira vez que na história do pensamento grego surge como coisa realmente existente, uma coisa não material, nem extensa, nem visível, nem tangível. [Morente]


45. Pitágoras nada escreveu; o que tanto mais nos solicita a que sobre ele escrevamos nós, sempre com o perigo à vista de tomar a «sombra» pelo «filósofo». No estado actual dos nossos conhecimentos, e dos preceitos, ou antes, dos preconceitos mais ou menos ocultos que marcaram o rumo da pesquisa, parece desesperada a empresa de situar o filósofo na linha que tem início em Anaximandro e sem esforço se prolonga até Xenófanes, para terminar em Platão. No entanto, apesar de nascido em Samo, posto que já em adulta idade e em grau de amadurecido pensamento, demandou as colônias ocidentais, para aí fundar a sua escola, mais verosímil do que provável se toma a hipótese de uma influência de Pitágoras sobre Parménides, mais directa que a de Xenófanes, por muito que a historiografia filosófica da Antiguidade insista na pretensão de que foi este o primeiros dos Eleatas. As últimas linhas do parágrafo precedente mostraram até que ponto nos conduz, e onde é forçoso que se detenha, um rastreamento do eleatismo de Xenófanes. Em todo o caso, é certo que não há sorte de «prestidigitação» lógica ou paralógica que converta o Deus-Uno no frg. 23 no Ser de Parménides; mas como também não vemos que ponte possa ligá-lo directamente ao Indiferenciado de Anaximandro, se não quisermos renunciar a alguma mediação histórica, só Pitágoras nos resta, como último recurso. A sombra de Pitágoras prolonga-se pelos dez ou onze séculos que vão da insegura data do seu nascimento até ao convencional início da Idade Média, e ao longo de todo esse milênio, a única verdade persistente é a da Lenda Pitagórica, circunscrita a dois pontos, cuja historicidade reúne os sufrágios da maioria dos pesquisadores responsáveis: o primeiro está no centro de uma aritmologia geométrica e física, ou de uma física e de uma geometria aritmológica; o segundo, resume-se no teorema, com todos os seus corolários, expressando, pela primeira vez, no mundo clássico, o que em termos de cultura moderna, se poderia designar por «dualismo psico-físico». Desde a primeira edição da Psique de [84] Erwin Rohde, reina entre filólogos e historiadores da filosofia um acordo quase unânime acerca da origem não grega deste segundo «momento» do primitivo pitagorismo. Corpo e alma, no homem e em todos os seres viventes; matéria e espírito, em toda a amplitude do cosmo, inequivocamente distintos e separados, ninguém achará, sem o extremado intuito de revoluir a ordem dos tempos, em fidedigno testemunho do pensamento, poética ou prosaicamente expresso, anterior à data mais provável em que se teriam difundido as ideias pitagóricas. Como as pesquisas de Rohde acerca das concepções gregas da imortalidade da alma tinham por fundamento antropológico o pré-animismo de Tylor, não se nos afigura despropositado que, em confronto, citemos algumas das mais significativas passagens de um livro de outro antropólogo, incidentes no mesmo tema, mas que gozam da inapreciável vantagem de mostrar que, não obstante a insegura base da sua construção verdadeiramente monumental, é ainda para o mesmo lado que se procuram as origens do pitagorismo, pelo menos no respeitante ao mencionado dualismo psico-físico, só que a concordância entre os dados da antropologia e da filologia se alinham, agora, num paralelismo quase perfeito. [Eudoro de Sousa. Horizonte e Complementaridade. Sempre o mesmo acerca do mesmo. Lisboa, INCM, 2002, p. 84-85]

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