Segundo Heidegger (BOUTOT, 1987 p.25), reina no pensamento de Platão uma maneira fundamental de proceder, na qual tudo gira ao redor de uma questão condutora da filosofia: “o que é o ente?”. A unidade da filosofia platônica não é aquela de um sistema, mas aquela de uma questão central: “o que é o ente?”.
Esta questão: “o que é o ente?” interroga o ente quanto a seu ser. É a questão socrática por excelência. Encontra-se na maior parte dos Diálogos de Platão, não tanto sob a forma geral: o que é o ser do ente em geral, mas sob a forma de questões particulares portando a cada vez sobre o ser de tal ou tal ente. Sócrates demanda por exemplo, no Hípias Maior: “o que é o Belo?”, no Mênon: “o que é a virtude?”, no Laques: “o que é a coragem?”, no Teeteto: “o que é a ciência?”. Na República, trata-se, entre outras coisas, de definir a justiça, e logo de responder à questão: “o que é a justiça?”.
Seria fastidioso querer recensear todas as ocorrências da questão “o que é tal ou tal ente?” em Platão, e isso quanto mais que o campo desta questão é, senão de fato, pelo menos de direito, propriamente ilimitado: nada há, com efeito, que não se possa legitimamente se demandar o que é. Mas sobretudo um tal recenseamento não alcançaria o que faz o essencial do pensamento platônico aos olhos de Heidegger. Pois este não põe tanta ênfase sobre o conteúdo a cada vez variável das questões socráticas, mas sobre a forma que lhes é comum. Sócrates demanda a cada vez “o que é…?, ele busca apreender o ser ou a essência (to ti estin) disto sobre o que ele se interroga. É esta orientação constante do pensamento para o ser ou para a essência que define então para Heidegger o fundo da filosofia platônica. É assim que Platão apresenta a filosofia, no Fédon, como uma “caça do ser (ten tou ontos theran)”. O filósofo, diz Heidegger, “deseja o ser (oregetai tou ontos)”, ele está amoroso do ser e da verdade. Estas fórmulas não são isoladas na obra de Platão. Elas mostram todas que o ser é o verdadeiro objeto da filosofia. E é este apego ao ser que permite distinguir fundamentalmente a filosofia da sofística. Filósofo e sofista se assemelham, diz Platão, como “cão e lobo” no que são capazes, um e outro, de discorrer universalmente. Mas enquanto o sofista se move em permanência no elemento do não-ser, o filósofo ao contrário se liga constantemente ao ser. Diz Platão que o sofista “se refugia na obscuridade do não-ser, e é à obscuridade do não-ser que ele próprio deve ser difícil a apreender plenamente. Quanto ao filósofo, é à forma do ser (te tou ontos idea) que se aplicam perpetuamente seus raciocínios, e é graças ao brilho do qual resplandece esta região que ele não é, ele também, fácil a ver” (Sofista 254a4 sq.).
O fato que a filosofia platônica seja assim fundamentalmente orientada ao ser (to on) significa então negativamente que não pode ser prioritariamente questão nos Diálogos das realidades do mundo sensível e fenomenal, que são justamente para Platão não entes (me onta), mas somente da essências desta mesmas realidades. Diz Heidegger, “um diálogo pensante fala constantemente do ser do ente. Um diálogo de Platão sobre a polis, não pode ser uma discussão sobre uma polis isolada aqui ou aí. O pensador pensa o que é a polis enquanto tal, ele diz o como que é a polis, e como ela o é” (Parmenides GA 54, p.140). Na República, Platão não se interroga sobre tal ou tal república podendo existir aqui ou ali, mas primeiro e antes de tudo sobre a essência de toda república, de toda polis. Seu propósito não é “ôntico” mas “ontológico”. Diz Heidegger, “A República de Platão é uma rememoração no essencial, e não uma planificação no factual” (ibid., p.141). Frequentemente se faz notar, nota Heidegger, que a República platônica era uma “utopia”, quer dizer que ela não existia realmente “em nenhum lugar” (ou ontos). Esta nota contém, a bem dizer, mas sem o saber, uma parte de verdade. Ela não afirma nada de outro com efeito que o fato por assim dizer evidente que “o ser do ente não é dado em nenhuma parte no interior do ente, como uma de suas partes” (ibid. 141). Mas Heidegger não considera por conta disto que a República imaginada por Platão seja uma utopia: “A República de Platão não é uma utopia, mas exatamente o contrário, quer dizer o topos metafisicamente determinado da essência da polis” (ibid.). Longe de ser sem lugar, a República platônica é ela mesma um lugar (topos), o lugar essencial do qual procede e do qual deve proceder toda república verdadeira.
A busca do ser que faz o fundo da filosofia platônica não se limita certamente em Platão à simples investigação “socrática” das essências. Há com efeito nele uma forma mais radical e mais fundamental da investigação do ser que a simples interrogação indefinidamente repetível, portando sobre o ser ou sobre a essência de tal ou tal realidade. É ela que aparece no Sofista onde Platão, como Heidegger o destaca desde o início de Ser e Tempo, põe a questão decisiva do sentido do ser. Neste Diálogo, Platão, pela voz do personagem do Estrangeiro, demanda com efeito: “ti pote boulesthe semainein opotan on phtheggenesthe”; “que queres significar cada vez que utilizais a palavra ‘ser’?”, quer dizer: “que quer dizer ‘ser’?”. A interrogação não porta aqui sobre tal ou tal ser, nem sobre o ser de tal ou tal ente, mas sobre o ser como tal, sobre o ser enquanto ser. Notemos que em pondo assim a questão do sentido do ser, Platão se interroga em realidade sobre a significação de uma noção da qual ele fez até o presente constantemente uso, mas em considerando que ela estava por conta. O Estrangeiro, que demanda o que “ser” quer dizer no Sofista, não reconhece ele mesmo que isso ele imaginava até o presente saber, mas que agora caiu no maior embaraço a seu respeito? Tudo se passa finalmente como se Platão descobrisse, no Sofista, o caráter altamente problemático disto que constituía no fundo desde sempre o objeto primeiro de sua investigação e cuja filosofia, segundo a expressão do Fédon, está perpetuamente à “caça”, a saber o ser ele mesmo.